TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE
Aproximando-se o ano 2000, o tema da Reconciliação aparece como essencial, não só para a celebração desse evento jubilar, mas também para mostrar a necessidade de um compromisso de nossa parte. Dada por Deus, em Cristo, acolhida por nós, ela nos reconcilia com Deus, os irmãos, com nós próprios e nos impõe uma tarefa pessoal de apostolado - diakonia - ministério.
1. O significado do termo e seu âmbito
O termo Reconciliação indica a restauração de boas relações entre inimigos, reatamento de amizade (Dicionário Aurélio), restabelecimento de uma normal relação afetiva, religiosa, jurídica, temporariamente deteriorada (Dicionário Devoto). Para que isso aconteça, urge a eliminação do que causou a inimizade. Supõe uma relação amical anterior, que foi rompida, agora acontece seu restabelecimento.
Nas relações entre Deus e o homem, isso se conseguia, nas várias religiões, pela expiação dos pecados, feita entre os judeus na festa do Kippur (Lv 23,27), pela oferta dos holocaustos, vítimas de expiação. Para a tradição cristã, isso acontecerá no sacrifício definitivo de expiação, a morte de Jesus na cruz (Hb 10,11-18).
Paulo, por sua vez, em o Novo Testamento, mostra a Reconciliação como a mudança de uma relação negativa em positiva, que acontece já agora, e que será real, só no fim dos tempos, como apokatastase.
2. Reconciliação na tradição do Antigo Testamento
No Antigo Testamento encontramos a problemática da Reconciliação predominantemente na perspectiva teológica das relações Deus - homem; sobre as relações entre as pessoas, pouco é dito. Somente, o Sirácide (Eclo 22,22a) diz: Se abrires a boca contra teu amigo, não temas, porque existe uma Reconciliação.
Aparentemente estamos diante de um texto aberto à fraternidade e ao perdão; entretanto, a segunda parte do versículo (22b) restringe a perspectiva: exceto em caso de ultraje, arrogância, revelação de segredo, golpe de traição .
Além disso, no Antigo Testamento, não encontramos uma Reconciliação entre inimigos, mas só a possibilidade de uma aliança, às mais das vezes por interesses políticos ou pessoais. Assim o povo de Israel nunca se reconciliará com os samaritanos, os opressores egípcios ou babilônios. O máximo a que se chegará é a aceitação do outro como diferente, expresso no mandamento do Levítico: Amarás o teu próximo como a ti mesmo(19,18b), mas mesmo assim, teríamos de alargar o significado de próximo, incluindo o estrangeiro, pois o versículo anterior do Levítico (19,18a) condicionara e limitara o significado de próximo a concidadão, não te vingarás, nem guardarás rancor contra os filhos do teu povo.
De fato, encontramos no Antigo Testamento gestos de reconciliação: José com seus irmãos (Gn 45), Absalão e Davi (2 Sm 14,33), mas a idéia bíblica de Reconciliação é essencialmente teológica enquanto diz respeito às relações entre Deus e o homem,1 pois o que se evidencia são o homem - como pessoa - e o povo - como coletividade que se afastam de Deus por causa do pecado pessoal ou coletivo. Pecado contra o Deus criador (pecado de Adão) e pecado contra o Deus da Aliança, pela não observância da Lei e, sobretudo, pela idolatria.
Esse pecado do povo é pintado pelos profetas com tintas fortes: não agias como uma prostituta, pois que desprezavas o pagamento, mas como mulher adúltera (que) acolhe estranhos em lugar do marido. (Ez 16,31-32).
Neste contexto acontece a Reconciliação. Deus perdoa o pecado dos indivíduos aceitando os sacrifícios expiatórios (Lv 1-7; 16) e tem misericórdia de seu povo: Por um pouco de tempo te abandonei, mas agora com grande compaixão torno a recolher-te (Is 54,7).
Exige dele, porém, um retorno (shub), uma conversão. Essa conversão significa precisamente a acolhida da Reconciliação oferecida por Deus. Restaura-se a relação inicial: Eles serão o meu povo e eu serei o seu Deus em fidelidade e justiça(Zc 8,8).
Podemos dizer, então, que no Antigo Testamento a Reconciliação domina todo o contexto das relações entre Javé e seu povo. De fato, se Javé é um Deus que reage diante do pecado dos homens com sua ira, Ele é ainda mais um Deus misericordioso, Perdoaste a iniquidade do teu povo, encobriste todo seu pecado; reprimiste todo teu furor, refreaste o ardor da tua ira (Sl 85,3-4) e 2 Mac. 7,33: e se agora, o Deus vivo está momentaneamente irritado contra nós, Ele novamente se reconciliará com os seus servos.2
A evolução da compreensão de Reconciliação acontecerá em o Novo Testamento, sobretudo na reflexão paulina: de Reconciliação somente entre Deus e sua criatura, para Reconciliação dos homens entre si e com a própria criação.
3. Reconciliação na tradição paulina
Paulo, em sua teologia, é devedor de sua formação farisaica, mas soube dar um passo adiante na compreensão do tema da Reconciliação, sob o influxo de sua cultura helenista. Para além das relações Deus - criatura, ele entrevê o homem e a criação - cosmos e seu trabalho apostólico teve uma finalidade precisa, anunciar a Reconciliação, Nós, portanto, doravante não mais conhecemos a ninguém segundo a carne; ...se alguém está em Cristo é uma nova criatura... mas tudo isso vem de Deus que nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos deu o ministério da Reconciliação. Efetivamente, Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo, ...e depondo em nossos lábios as palavras de Reconciliação. Somos, portanto, embaixadores ao serviço de Cristo, ...nós vos suplicamos ... reconciliai-vos com Deus (2 Cor. 5,16-20).
* tudo isso vem de Deus que nos reconciliou consigo
O vocabulário da Reconciliação é quase exclusivo de Paulo, só Mateus (5,24) usa um termo semelhante lembrando a necessidade de se reconciliar com o irmão antes de fazer a oferta.
É bom lembrar que a Reconciliação para Paulo é um dom gratuito, pois embora sendo como toda Reconciliação um fato recíproco, não é porém, e não pode ser o encontro de duas vontades e de duas iniciativas equivalentes, mas é sobretudo uma iniciativa de Deus, o qual reafirma com esta a sua superioridade em relação ao homem.3
A Reconciliação é, pois, o efeito transformador da ação de Deus no homem, e não fruto de nossos sofrimentos ou orações. É iniciativa absolutamente gratuita de Deus, que nos amou primeiro (cf. I Jo 4,19).
* por meio de Cristo
Esse versículo mostra que a verdadeira novidade, agora, é vista não mais no arrependimento do pecador e na sua volta à observância da Lei, mas no dom gratuito de uma condição de justiça que é ligado ao dado histórico da morte de Cristo e ao elemento pessoal da fé no crucificado.4 A morte de Cristo na cruz torna-se então o modo como a Reconciliação acontece, por ser expressão maior do amor de Deus que nos dá seu filho.
A Reconciliação é vinculada à morte e ressurreição de uma pessoa concreta, Jesus Cristo, com quem o homem estabelece uma relação pessoal de confiança e fé. Jesus Cristo é a causa pessoal de nossa Reconciliação.
* e nos deu o ministério da Reconciliação somos, portanto, embaixadores ao serviço de Cristo
A missão do apóstolo consiste, precisamente, no encorajar esta resposta humana, em provocá-la; ela se chama ministério da Reconciliação5 e sua pregação é a palavra de Reconciliação (2 Cor. 5,19). Pregando que Deus reconciliou o mundo consigo, São Paulo espera que os homens se reconciliem com Deus. Há aqui, em termos de Reconciliação, uma definição de apostolado6 e pode-se deduzir, com exatidão, qual foi o apostolado que empenhou Paulo durante toda sua vida.
A aplicação aos homens dos efeitos da redenção, realizada exclusivamente por Cristo, será possível só com a adesão do homem, que a acolhe na e pela fé. Realmente diante da Reconciliação o homem tem um papel ativo, enquanto a diakonia tés katallagés (= ministério da Reconciliação) lhe dá a capacidade de se reconciliar com Deus e o direito de anunciá-la.
Em Rm. 5,10s, a Reconciliação é apresentada como passiva, por ser ação exclusiva de Deus em nós, porém, é igualmente claro que Deus não impõe a sua iniciativa, mas insiste, por seus mensageiros, para que o homem a aceite (2 Cor. 5,20: vo-lo suplicamos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus), respeitando então de modo absoluto a nossa personalidade ativa e livre.7 A ação divina quis suscitar uma resposta humana. Sem essa resposta, a Reconciliação realizada não obteria um resultado concreto no indivíduo.8 Trata-se de aceitar uma Reconciliação realizada e não mais unicamente como Promessa.
A aceitação deste anúncio apostólico terá como resultado um efeito ontológico e não só psicológico ou moral pois ao mesmo tempo restabelecerá a paz entre o homem e Deus (Rm. 5,1; Ef. 2,18), entre os homens (Ef. 2,14-16) e em todo o universo (Cl. 1,20); em suma, justificará o homem, pois justificação e Reconciliação são sinônimos,9 fará dele uma criatura nova ( 2 Cor. 5,18) com o amor de Deus no coração (Rm. 5,5). Essa revelação do amor supremo de Deus transformará nosso modo de ser, ora caminhamos segundo o Espírito (Rm. 8,4). A Reconciliação supera nosso egocentrismo pecaminoso e nos une a Deus fazendo-nos viver para Cristo.10
4. Reconciliação com o cosmos, com os homens e consigo
Em 2 Cor. 5,19s, Paulo fala da Reconciliação do mundo não como oposto a nós mas como totalidade dos homens e como totalidade do criado (cf. também Cl. 1,10). É sempre Deus que toma a iniciativa e reconcilia o homem e o cosmos através do sofrimento (cruz - sangue) de Cristo. Na carta aos Efésios afirma: Ele é a nossa paz: de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro de separação e suprimido em sua carne a inimizade - a Lei dos mandamentos expressa em preceitos - a fim de criar em si mesmo um só Homem Novo, estabelecendo a paz, e de reconciliar a ambos com Deus em um só corpo, por meio da cruz, na qual ele matou a inimizade (2,15-16).
É claro que o texto paulino se refere em primeiro lugar a judeus e pagãos, mas o que é dito deles vale para todos os homens de todos os tempos e culturas. De inimigos se tornam concidadãos, surge a possibilidade de uma amizade nova, na paz restabelecida.
A Reconciliação dos povos é possível em Cristo, pela sua cruz, mas para que a Reconciliação chegue a todo eles, é necessário a pregação até os confins da terra (Mt. 28,19; Mc. 16,15; Lc. 24,47), é preciso que se aceite o shalom Javé não só como uma possibilidade, mas como realidade a ser construída. Ao hebraico asha shalôm, corresponde o eirénopoiésas de Colossenses (1,20), fazer a paz, estabelecer concórdia e paz, que o italiano diz muito bem com rappacificare, isto é, restabelecer a paz outrora existente. Realidade nova e difícil de ser conseguida, porque inclui o perdão.
Tendo sido reconciliados os homens, o universo também o é, pois o universo é associado à sorte das pessoas humanas, a matéria entra nesta esfera pessoal.11 Desse modo a diakonia tés katallagés (= ministério da Reconciliação) terá fim quando tiver chegado a todos os homens, e por estes a todo o universo material. A finalidade transcendente do mundo para Deus passa pelo homem. O mundo recebe do homem o seu fim a criação é ordenada à relação do homem com Deus e nela se integra a criação tende a participar da espiritualidade do homem, e realizá-la.12 Afinal de contas, Cristo é o ponto ômega não só dos homens, mas de toda a criação.
Por último, mas não menos importante, convém lembrar que a Reconciliação com Deus leva necessariamente à Reconciliação do homem consigo mesmo, isto é, reconstrói em si a imagem de Deus,13 não mais pela observância de uma Lei, mas pela fé no Cristo morto na cruz e ressuscitado. Retorna-se à situação de justiça anterior ao pecado, à amizade com Deus, perdida. Há um novo nascimento, agora do alto, pela força do Espírito (cf. Jo 3,5). A Reconciliação restaura no homem a harmonia original.
Essa nova atitude do homem inclui um itinerário místico, pois estando em paz com Deus, se está consigo mesmo; o homem deixa de ser um alienado, entra no projeto de Deus e se realiza como pessoa. Aceitando a vontade de Deus, encontra a paz interior, como Cristo, no Getsêmani, depois de ter dito: faça-se a tua vontade (Mt 26,42).
Conclusão
Tudo isso significa que a redenção operada por Cristo, embora sendo completa, não dispensa ninguém duma participação no ministério que recebemos em razão da nossa fé batismal. Somos um povo sacerdotal (1 Pd. 2,5.9) e como tal temos uma missão a cumprir.
A missão da Igreja não é outra, que continuar aquela de Cristo (2 Cor. 5,18s; Jo. 20,21), e poderemos falar de um mundo dos homens totalmente reconciliado só como antecipação da atuação definitiva daquilo que está virtualmente presente no plano divino e no fundamento da Reconciliação, ou seja, no sacrifício de Cristo.14
Paulo atuou em favor da Igreja (Cl 1,20), na medida em que realizou sua missão de ministro da Reconciliação. Agora é nossa vez. Pelo apostolado (batismal ou ministerial) daremos aos homens a possibilidade de aceitação pessoal da Reconciliação realizada por Deus através da morte e ressurreição do Cristo e oferecida a nós.
NOTAS
1. Penna R., Riconciliazione, in Dizionario di Teologia della Pace, Bologna, EDB, p. 763.
2. cf. também 2 Mac. 1,5; 8,29.
3. Buechsel F., Katallaso; GLNT. Brescia 1965, vol.I, col. 694.
4. Penna R., idem, p. 764.
5. Prefiro falar de ministro e não de servidor da Reconciliação, como faz nossa Regra de Vida, nº 7, no original françês, pois servidor evidencia Reconciliação em detrimento da pessoa que anuncia; o termo ministro, por sua vez, é dinâmico, valoriza e destaca mais a pessoa que tem uma missão a cumprir, anunciar, ser embaixador de Cristo. A fonte é Cristo, eu, como cristão, sou o ministro, a Reconciliação é o objetivo a ser anunciado e alcançado.
6. Galot J., La Rédemption Mystère dAlliance, Paris/Bruges 1965, p. 53.
7. cf. Buechsel F., art. cit., col. 686-687; Galot J., op. cit., p. 52.
8. Galot J., op. cit., p. 53.
9. cf. Lyonnet S., La Historia de la Salvacion en la Carta a los Romanos, Salamanca 1967, p. 163 e nota 26; p. 164 e nota 28.
10. cf. Buechsel F., art. cit., col. 685-686.
11. Galot J., op. cit., p. 56.
12. Alfaro J., Teologia del Progresso Umano, Assisi 1969, p. 42-43.
13. Borriello L., Riconciliazione con se stessi, in Dizionario di Teologia della Pace, EDB, p. 765.
14. Buechsel F., art. cit., col. 689 e nota 41.