TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE

A SOLIDARIEDADE NOS EVANGELHOS

Delio Ruiz (AU)
1. Os Sinóticos: “Jesus, o servo solidário e compassivo”

A Igreja apostólica, perguntando-se depois da ressurreição de Jesus sobre o obscuro enigma da morte ignominiosa do Messias, não tardou em encontrar a resposta em sua relação com o pecado humano. Este eco provém da mais antiga profissão da fé cristã conservada em 1Cor 15,3: “Cristo morreu por nossos pecados segundo as escrituras”.

A partir de então começa uma interminável reflexão do NT, dos Padres, da teologia e da mística, que se esforçam por compreender a conexão entre a cruz de Cristo e a liberação do pecado; se utilizam vários modelos de pensamento, p. ex., o modelo cultual do sacrifício expiatório, o modelo social do resgate da escravidão, etc. A Igreja apostólica se serviu da referência ao Servo de JHWH (Is 42-53), descobrindo nesta imagem uma impressionante simetria com o evento de Jesus; foi um meio valioso para compreender, anunciar e justificar o desenrolar da Paixão do Senhor (cf. Atos 8,32-34, 1Pe 2,21-25)1.

Depois dos acontecimentos de “terceiro dia”, o interesse da primeira comunidade cristã começou a concentrar-se sobre a Paixão de Jesus e depois, pouco a pouco, foi-se concentrando nos “feitos e palavras” de seu ministério terreno. Para descobrir a solidariedade de Jesus como um homem de seu tempo, recorremos às redações sinóticas recolhendo os aspectos que nos brindam cada evangelho, porém sem pretender no momento falar de uma cristologia típica de cada evangelho.

1.1. Marcos

O qualificativo de Jesus como “Nazareno”, é utilizado quatro vezes (cf. 1,24; 10,47; 14,67; 16,6) contra a total ausência em Mt (duas vezes aparece um nome mais enigmático: “Nazoreu”) e só duas vezes em Lc (mais uma vez “Nazoreu”). Evidentemente Mc põe o acento sobre uma das coordenadas fundamentais da encarnação, isto é, o lugar preciso da proveniência geográfico-social de Jesus. “Nazareno” é o nome da concreção histórica, da normalidade cotidiana: ele é o nazareno como tantos outros o eram, ainda se os leitores provavelmente não conheciam outros2.

Outro apelativo original parece ser o de “esposo” em 2,19-20, do qual Jesus mesmo fala a seus discípulos como amigos do esposo, os quais não podem jejuar enquanto ele estiver com eles3. O título “Filho de Deus” aparece cinco vezes e enquadra todo o relato: por um lado, a voz de Deus no Batismo no Jordão (cf. 1,11), por outro, a confissão do centurião aos pés da cruz (cf. 15.39). Portanto, já desde o começo o leitor sabe tudo o que vai ler no evangelho, com respeito a um personagem que Deus mesmo declarou como seu Filho, no qual se reúnem pelo menos três características derivadas do AT: a messianidade, o amor do Pai, a função de servo4. Mc é fiel à sua própria linha cristológica: em sua identidade profunda, Jesus não corresponde aos preconceitos humanos; ao contrario, é necessário calcular os êxitos inesperados que revelam Jesus na profundidade de seu mistério.

O título “Filho do homem” (14 vezes): seja no começo (cf. 2,10: o perdão dos pecados) como no fim (cf. 14,62: a vinda sobre as nuvens do céu), está ligado a uma manifestação de poder; sem dúvida, a partir de 8,31 está relacionado com o inaudito tema do sofrimento, que em 10,45 encontra seu máxima e mais típica expressão: “Porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar seu vida em resgate por uma multidão”. Aqui a mera e tradicional dimensão apocalíptica judaica é superada, e a figura do Filho do homem é elevada desde as nuvens do céu até a terra, daí o perdão dos pecados e a expulsão de Satanás são apresentados como formas de solidariedade e serviço ao homem. O leitor de Mc chega a compreender desta maneira toda a novidade sobre este Jesus tão concreto e terreno e, sem dúvida, tão surpreendente como inenarrável.

1.2. Mateus

Tentamos fazer um esboço da cristologia deste evangelho segundo três qualificativos principais que nos oferece o evangelista5.

a) Jesus como Messias. Literalmente o qualificativo hebreu-arameu de “Messias”, Messíah, em Mt não existe6. A Igreja pós-pascal transformou muito cedo seu equivalente grego Christós em um nome próprio. Sem dúvida, Mt revela um interesse particular pelo significado deste nome7.

A messianidade de Jesus em Mt consiste essencialmente em não cumprir a esperança de Israel. O evangelista o faz ver de dois modos. Antes de tudo, sublinha a definição de Jesus como Filho de Davi, o qual se realiza de diversas formas (cf. 1,1,6.7.17; 9,27; 20,30; 21,9; etc.). Em segundo lugar, Mt remete explicitamente a Jesus às profecias do AT. A fórmula que expressa o cumprimento aparece 12 vezes (1,22; 2,15.17.23; 4,14; etc.)8.

b) Jesus como Mestre. Mt não usa o título específico de “mestre9mais vezes que Mc embora o faça com alguma originalidade. Em primeiro lugar, constata-se o modo com o que Mt abre o ministério público de Jesus. Enquanto em Mc ele se manifesta em seguida na sinagoga de Cafarnaum como um exorcista poderoso (cf. Mc 1,21-28), em Mt Jesus começa com uma imensa atividade magisterial, mediante o longo discurso da montanha (cf. Mc 5-7), instrui solenemente os discípulos e a multidão acerca das exigências que devem caracterizar os que decidem segui-lo. A primeira imagem de Jesus que Mt oferece não é a de um taumaturgo mas a de um mestre com autoridade10.

Em segundo lugar, uma originalidade de significado aparentemente oposto, se constata no âmbito das pessoas que empregam o apelativo de Mestre na trama do relato. Com efeito, enquanto em Mc se dirigem a Jesus chamando-o “Mestre”, não somente os estranhos mas também os discípulos (cf. Mc 4,38; 9,5), Mt, em contrapartida, nos diálogos direitos se preocupa, por um lado, em corrigir este apelativo com o título de “Senhor”, e, por outro, em reservar o título só em relação àqueles que são íntimos de Jesus (cf. Mc 8,19; 19,16; 26,49). Em contraste com esta práxis, se encontra em Mt (y só em Mt) uma passagem importante na qual proíbe a seus discípulos este título (Mt 23,8.10).

Se questionou saber até que ponto Jesus é visto em Mt como um novo Moisés, e portanto com as características de um novo legislador, segundo uma tipologia repetida mais de uma vez11. De qualquer forma, Mt tem algo a dizer acerca de Jesus que vai muito mais adiante desta tipologia.

c) Jesus como Emanuel. Entre os autores do NT só Mt evoca explicitamente o nome simbólico atribuído por Is 7,14; 8,8.10 (hebreu TM: cimmânû ’êl, grego LXX: ’Emmanouêl) a um personagem cuja identificação é discutida, mas que aparece trazendo uma grande esperança para o reino de Judá12. A passagem de Isaías se encontra citada diretamente em Mt 1,23 (com tradução grega do nome hebreu: meth’humôn ho Theós, “Deus conosco”) a propósito da concepção virginal de Jesus. A interpretação messiânica da passagem profética é coisa exclusiva do mesmo Mt, não encontrando-se nenhum testemunho anterior13. A citação de Isaías constitui o primeiro texto bíblico mencionado pelo evangelista e, portanto, da uma chave para interpretar toda a composição. Com efeito, é possível ler todo o evangelho à luz de uma cristologia enquadrada sob o tema específico da presença solidária de Deus em meio a seu povo14.

A idéia volta no evangelho de Mt sobretudo em outros dois casos: em 18,20 (“Porque onde houver dois ou três reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles, (em mésoi humôn”)15 e em 28,20 (“E eu estarei sempre convosco [egò meth' humôn] até o fim do mundo”). Na interpretação do evangelista, a presença salvadora de Deus é agora o Emanuel, Filho da virgem, quer dizer, Jesus. O prefigurado no anúncio sobre aquele menino, chega à sua plenitude no Ressuscitado, aquele a quem foi dado todo poder no céu e na terra (28,18), que vela em meio de sua Igreja até o fim dos séculos. A colocação estratégica destas passagens na redação de Mateus, no começo, no centro e no fim, permite ler o evangelho à luz deste tema fortemente cristológico. Portanto, Mt se mostra particularmente sensível ao duplo tema complementar da presença de Deus em Jesus e da presença de Jesus em meio dos seus.

Mt apresenta Jesus como o autêntico intérprete da vontade de Deus contida na lei (Mt 5,21-48) -dizer que Mt apresenta a Jesus como autêntico intérprete da lei, seria muito pouco-, o evangelista une três momentos da historia da salvação: 1) Israel de Deus, testemunhado na “escritura”, aqui Deus revelou sua vontade mediante a lei; 2) Jesus como cumprimento da lei e nova imagem da presença de Deus em meio de seu povo; 3) a comunidade de Mateus, que recebe e transmite a todos os povos este ensinamento como elemento normativo, e, deste modo, atualiza e mantêm vigente a palavra de Jesus. A presença do Ressuscitado legitima e capacita para esta tarefa. Sobre esta base se apóia a compreensão cristológica do Emanuel16.

O nome bíblico “Emanuel” é mais um nome funcional17. Com as palavras conclusivas do Jesus ressuscitado “Eu estarei convosco todos os dias...”, Mt substitui a promessa do espírito, com o qual conclui tanto Lc 24,49 (cf. At 1,8) como também Jo 20,19-25 ( e os discursos da última ceia). Segundo Mt, a presença de Jesus no meio de sua comunidade se mede não tanto com seu espírito, mas em sua dimensão pessoal, viva e imediata18. É relevante o modo desta presença de Jesus especialmente em “os pequenos”, com quem ele se identifica: “ em verdade digo-lhes que aquilo que fizeram a um destes irmãos menores, a mim o fizeram” (Mt 25,40). O discípulo está chamado a descobrir esta presença e responder solidariamente.

1.3. Lucas ( e Atos)

A novidade fundamental de Lucas, diferentemente de Mateus e de Marcos, consiste em que aquele não se limita a narrar uma historia de Jesus, mas concebe uma colocação literária e teológica de grande alcance, fazendo ver que o acontecimento salvífico iniciado por Jesus prossegue na história da Igreja. A obra de Lucas resulta num conjunto unitário e deve ser considerada como tal19. Sem dúvida, o evangelho apresenta uma cristologia mais orgânica20.

Limitando-nos ao evangelho, podemos evidenciar a existência de alguns dados lingüísticos típicos da narrativa lucana que mantêm uma relação entre eles e têm uma importância cristológica. a) uma primeira constatação se refere à intervenção do próprio narrador que em seu texto professa abertamente sua fé pessoal em Jesus como “Senhor”, Kyrios. À diferença de Mc e Mt, que empregam este título unicamente em discurso direto, Lc o emprega no próprio relato como expressão de sua linguagem, em lugares onde ele narrara em terceira pessoa, p. ex., “O Senhor diz...” aparece 14x (cf. 7,13.19; 10,1.39.41; etc). b) Ademais, nenhum outro evangelista usa o advérbio grego semeron, “hoje”, para indicar a importância do tempo da presença de Jesus. Lucas, em contrapartida, o emprega cinco vezes (cf. 2,11: “Hoje lhes nasceu um salvador”; 4,21; 19,5.9; 23,43). A Lc interessa fazer notar que com a presença viva de Jesus e com sua acolhida se cumpre algo decisivo para os homens, é dizer, se põem as bases para sua salvação21. c) Tampouco nenhum dos outros Sinópticos utiliza o termo cháris, “graça”, que Lc emprega oito vezes, das quais pelo menos a metade tem um valor teológico (cf. 1,30; 2,40.52; 4,22)22. Este conceito tem realmente importância para nosso autor sagrado23. c) Finalmente, somente Lucas sublinha o fato que, direta ou indiretamente, em Jesus há algo que “deve”, deî ( ou “devia”, édei) ocorrer necessariamente (cf. 2,49; 4,43; 9,22; 12,12; etc.)24.

A manifestação e demonstração da graça se dá no feito de que Deus revela em Cristo a plenitude de sua “entranhável misericórdia, visitando-nos o Sol que nasce do alto” (Lc 1,78)25. Os dois momentos, a manifestação e a demonstração, estão bem reapresentadas nas páginas do Evangelho. Em primeiro lugar, a manifestação se dá quase como introdução, desde os primeiros dois capítulos dedicados aos acontecimentos da infância de Jesus. À diferença de Mt, em Lc 1-2 se revelam ao leitor já desde o começo os principais títulos cristológicos26. O tema dialético da deposição dos poderosos e a elevação dos humildes (cf. 1,46-55), personificados nas figuras dos ‘anawîm’, “pobres” (cf. Maria, os pastores, Ana, Simeão), antecipa já o desenvolvimento de valores que se concretizarão na ação do Messias Jesus como revelação da “misericórdia de Deus para aqueles que o temem” (1,50).

Em segundo lugar, a manifestação pessoal da graça de Deus ocorre quase como um ‘manifesto’ na inauguração de seu ministério na sinagoga de Nazaré (cf. 4,16-30). Esta passagem contém uma importante função hermenêutica para a compreensão de todo o evangelho de Lucas: no contexto do último ano jubilar, se anuncia a graça que traz a boa notícia da libertação aos pobres, aos prisioneiros, aos cegos e aos oprimidos.

Lc apresenta esta misericórdia (éleos), com um destaque particular, não somente como anúncio verbal mas também, e sobretudo, como a manifestação efetiva no ministério desempenhado por Jesus. Com efeito, este evangelho, além dos paralelos de Mc e de Q, tem um material próprio sobre esta dimensão que lhe é própria27. O c.15 aborda amplamente esta característica lucana28. Os primeiros versículos introduzem as três parábolas que seguem imediatamente, referidas à misericórdia: a ovelha (vv.3-7); a dracma (vv.8-10); o filho (vv.11-32) perdidos e reencontrados. Esta última parábola, cujo ensinamento contém valores emblemáticos para todo o evangelho, combina ao mesmo tempo o tema da graça com o de uma “necessidade divina”: “era preciso celebrar uma festa e alegrar-se, porque teu irmão tinha morrido e voltou à vida, tinha-se perdido e foi encontrado” (v.32). Lc nunca dá uma definição nem da graça nem da necessidade. Este “é preciso” é o amor fora de todo cálculo, o do perdão incondicional, numa palavra, o da humanidade de Deus29. O ponto central é a misericórdia festiva. O valor cristológico do relato é claro: no comportamento de Jesus se manifesta e se demonstra a misericórdia do próprio Deus. Aquilo que na parábola é simplesmente um relato, na vida de Jesus é uma realidade.

Em geral, a imagem de Jesus em Lucas está marcada pela cristologia. O evangelista faz que apareça uma imagem que conserva na geração cristã avançada a lembrança viva de Jesus, porém que permite ver também a predileção de Lucas pela humanidade de Jesus, por seu atitude decidida a favor dos pobres e dos desamparados, por seu atenção e bondade para com as mulheres, e pela profunda piedade de Jesus.

1.4. A compaixão de Jesus

A solidariedade de Jesus se expressa nos Sinópticos de maneira especial mediante o verbo splagchnízomai (compadecer-se, ter misericórdia). No NT o verbo (que é depoente passivo) aparece unicamente nos Evangelhos sinóticos num total de 12 vezes30. Seu significado quase sempre é indicado por meio de sinônimos, de sentir “misericórdia, compaixão”31.

“E ao desembarcar, viu muita gente, sentiu compaixão (esplgchnísthe) deles, pois estavam como ovelhas sem pastor, e se pôs a ensinar-lhes muitas coisas” (Mc 6,34).

Marcos introduz (em forma talvez redacional) o relato do milagre com o que se dá de comer a cinco mil pessoas, aludindo claramente a Ez 34, de tal maneira que o Jesus que se apieda aparece como o representante (escatológico) do próprio Deus; no segundo relato (o milagre de dar de comer a quatro mil pessoas), Marcos põe nos lábios do próprio Jesus a afirmação: “Tenho compaixão desta gente, porque já faz três dias que permanecem comigo e não têm o que comer” (Mc 8,2). Mateus recolhe as duas passagens de Marcos (Mt 9,36 e 14,14a, repetido em 15,32) e acrescenta redacionalmente em 20,34 ao texto de Mc 10,52 as palavras “ele teve compaixão” como motivo para a cura dos cegos. Em consonância com ele se encontram Lc 7,13 (“Ao ver a mãe do menino que tinha morrido, o Senhor teve compaixão dela e do filho e disse ‘não chore’”) e a motivação que aparece em Mc 1,41 (cura de um leproso) e 9,22 (o pai do epiléptico pede: “Compadece-te de nós!”).

O verbo splagchnízomai aparece também em três parábolas de Jesus: em Mt 18,23-35 (v.27) referindo-se ao patrão do criado que não teve misericórdia; em Lc 15,11-32 (v.20), referindo-se ao pai do filho pródigo (aqui o filho maior, com seu desagrado pela conduta do pai, marca o contraste, v.28). Na parábola exemplar do Samaritano compassivo (Lc 10,30-37), se menciona com splagchnízomai o motivo decisivo para sua boa ação em favor do homem que tinha sido vítima dos salteadores. A viagem do samaritano - a missão de Jesus- é a compaixão mesma de Deus por seus filhos. Aqui o sentido do verbo alcança toda sua expressão: ter misericórdia, compaixão, é chegar a “comover-se” no mais profundo; assim como as vísceras maternas de Deus32 se comovem diante do mal do homem, seu Filho pode agraciá-los com seu amor solidário.

2. São João

Porque Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho unigênito, para que todo o que crer nele não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16).

O diálogo de Jesus com Nicodemos num determinado momento se transforma em monólogo (aquele notável fariseu parece desaparecer na noite que o tinham traído), no qual encontra um amplo desenvolvimento o tema da encarnação. Deus entregou (na encarnação e também na própria morte) o próprio Filho para que nós tenhamos a vida (cf. Rm 8,32; Gal 2,20). Por isso, a missão de Jesus não é de condenação, mas de salvação33.

O texto precedente revela o alcance infinito da solidariedade de Jesus para com o homem. O estudo do tema na literatura joânica poderia ter inumeráveis perspectivas dada a complexidade e riqueza que oferece a cristologia do quarto evangelho34. Devemos fazer uma opção ao considerar simplesmente um aspecto do sentido solidário de Jesus que fundamente a comunhão do crente com ele e as conseqüências comunitárias da vida de caridade35.

2.1. Jesus, centro fecundante da comunhão eclesial

A doutrina de João sobre a Igreja, a qual vive unicamente de Jesus, se encontra sintetizada nos dois grandes discursos simbólicos do Mestre: o do pastor (10,1-16) e o da videira (15,1-17)36.

a) O bom pastor (Jo 10,1-16; 10,25-30)

A imagem tem uma longa tradição no mundo do antigo oriente médio e sobretudo no AT. Também os Sinóticos conhecem a imagem e a parábola do bom pastor, que Jesus aplica a si37; porém em Jo aquela imagem alcança mais amplia e profundamente um valor cristológico e eclesiológico.

1. No discurso do bom pastor, Jesus diz antes de tudo (cf. também Jo 10,1-5): “Eu sou a porta das ovelhas” (10,7); “Eu soua porta: quem entra através de mim será salvo” (10,9). 2. Jesus é aquele a quem as ovelhas seguem bem como legítimo e conhecido pastor. 3. Jesus é o bom pastor que oferece sua vida pelas ovelhas (10,11); os discípulos vivem de sua voluntária decisão. 4. Com Jesus e em Jesus teve começo a grande missão universal de reunir a todos. Assim haverá “um só rebanho e um só pastor” (10,16). 5. Jesus, o bom pastor, os guardará eternamente e lhes dará a vida eterna. Ninguém poderá tirar de sua mão nem de seu Pai(10,25-30). 6. O mútuo conhecimento entre Jesus e seus discípulos se funda na relação de reciprocidade entre Jesus e o Pai (10,14-15), o que significa que a comunhão de Jesus com o Pai (10,30) é o fundamento da comunhão dos discípulos com Jesus, e Jesus é o bom pastor porque dá a vida pelos seus em conformidade com a vontade do Pai (10,17-18).

b) A videira verdadeira (Jo 15,1-17)

O simbolismo da vinha é notável no AT (cf. Is 5,1-7) e encontra grande desenvolvimento nos Evangelhos sinóticos38. Todas as parábolas dos Sinóticos têm em comum o fato que a vinha, ou as pessoas relacionadas com ela, reapresentam a Israel ou uma porção dele. Se estabelece um contraste entre o fruto que Israel, em quanto vinha plantada por Deus, ou os operários da vinha, deveriam dar ou produzir com o trabalho, e o escasso ou nulo resultado que aparece de fato.

Este material tradicional sofre uma transformação no evangelho de João, seja na forma literária como no conteúdo. Quanto à forma, em Jo não se conta nenhuma história particular (ou parábola), mas se faz uma observação geral e alegórica da vida; todo o relato está dominado pela frase inicial: “Eu sou” (egò eimí), nos encontramos em uma concentração cristológica do símbolo da vida. Quanto ao conteúdo, Jo tira o quid da parábola do contexto da crise escatológica produzida pelo ministério de Jesus e o aplica à vida cotidiana da Igreja; a videira deixa de reapresentar a Israel e se transforma numa definição cristológica aplicada à própria pessoa de Jesus.

Lida desta forma por João, esta imagem chega a ser o símbolo do discipulado e da profunda e absolutamente necessária união dos discípulos com Jesus. Somente “unidos a Jesus” e “permanecendo nele”, os cristãos chegam a ser tais e podem viver como cristãos39. Em Cristo reside a fecundidade do verdadeiro serviço a Deus, a fecundidade da oração e da obediência no amor mútuo e solidário. Somente aqueles que “permanecem nele” são os amigos de Jesus (15,14) e permanecem necessariamente unidos entre si no amor (15,9-12).

À espiritualidade fraca de muitos cristãos que sentem sua religiosidade como um peso a suportar, Jesus propõe uma religiosidade de comunhão interior e amor gozoso e generoso. Trata-se de cultivar a vida de Jesus em nós (permanecer nele) para que a imensa vinha do Senhor no mundo cresça no amor e na solidariedade e caminhe sempre mais para a unidade.

2.2. A comunhão recíproca em 1Jo

Mais que combater os erros, a finalidade principal da carta é refletir positivamente sobre a fé e a existência cristã40. Escolhemos como centro de nossa reflexão o prólogo da carta (1Jo 1,1-4).

A palavra koinonia aparece somente quatro vezes em 1Jo (1,3ab.6.7). Porém, há também outras expressões que retomam e ampliam seu conteúdo e modalidade: por exemplo ser em e permanecer em; conhecer; amor e amar; uns aos outros. Cada uma destas expressões mantêm sua característica específica e, em conjunto, falam da “comunhão”, conceito que não está privado de complexidade. Na linha da comunhão pensamos sobre o tema da solidariedade.

O grupo semântico ao qual pertence a palavra koinonia, expressa o significado de “co-participação dos mesmos bens” por parte de duas ou mais pessoas. Daqui o significado de “reciprocidade” entre os membros que participam do mesmo bem. Está presente uma nota importante: a cooperação de todos para o bem comum41. Nos quatro casos mencionados a palavra koinonia em 1Jo aparece com a mesma expressão: “tenham comunhão com (metá)”. A comunhão é então algo que se pode possuir (echein). “Permanecer em (menein)” e “ser em”, expressam não só a intimidade e a profundidade da presença, como sua estabilidade. Não se pode falar de comunhão onde o estar juntos é provisório e ocasional: estar juntos não é simplesmente fazer algo juntos. 1Jo utiliza a palavra agapam e agape para se referir a um amor concreto, realizável, verificável na prática.

Para que tenham comunhão conosco” (1,3). “Para” (hina), quer dizer que a comunhão é a finalidade para a qual tende todo o que precede. A finalidade da carta não é diretamente missionária mas eclesial. O autor se dirige aos cristãos que correm o perigo de perder a relação com o origem de seu fé. O sujeito “nós” se refere às testemunhas oculares contemporâneas do acontecimento de Jesus, aqueles que hoje prolongam fielmente o testemunho. A comunhão se constrói na tradição comum. Porém a expressão “conosco” diz algo mais. Não se reduz a uma simples sintonia com o mensagem que se vem testemunhando e anunciando, mas também exige um elo de pertença, de experiência e de vida com o grupo “nós” que anuncia e testemunha. De sua parte, a preposição grega meta, seguida do genitivo, indica companhia, solidariedade, estar de acordo, estar juntos. A koinonia se orienta para a fé, mas sempre implica uma relação vital entre pessoas.

Tenhamos comunhão recíproca” (1,7). A palavra koinonia volta a aparecer em 1,6-7) num contexto distinto em relação ao prólogo da carta. No prólogo a atenção estava sobretudo na fidelidade a “o que existia desde o princípio”: somente inserindo-se na tradição vivente que vem das origens, se entra em comunhão com Deus. O acento agora está na práxis: só caminhando na luz se realiza a verdade, se está em comunhão com Deus e entre nós.

Si dizemos que estamos em comunhão com ele e caminhamos nas trevas, mentimos e não caminhamos conforme a verdade. Mas se caminhamos na luz, como ele mesmo está na luz, estamos em comunhão uns com outros” (1,6-7).

Chama a atenção, antes de tudo, que a comunhão com Deus e a comunhão entre nós são recíprocas. Inclusive, as duas dimensões da comunhão parecem sobrepor-se. Com efeito, sem trair o texto, pode-se construir este paralelismo: se caminhamos nas trevas, não temos comunhão com Deus; se caminhamos na luz, temos comunhão entre nós42.

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1 F. Duci, “Partecipi dell'oferta di Cristo”, em Spititualità oblativa riparatrice, Dehoniane, Bologna 1989, 137.

2 Portanto, está ausente a nota de celebridade.

3 Certamente, depois de Mc esta metáfora cristológica conhecerá um desenvolvimento considerável em relação a Jesus (cf. 2Cor 11,2; Mt 22,1-2; 25,1-13; Jo 2,29 [2,1-11]; Ef 5,22-33; Ap 19,7; 21,2.9).

4 A declaração do Céu alude a Sal 2,7 (Gn 22,2 LXX; Is 42,1).

5 Para análise do tratamento redacional dos clássicos títulos Filho do homem e Filho de Deus, que não constituem o proprium do evangelista, cf. R. Schnackenburg, La persona de Jesucristo reflejada en los cuatro Evangelios, Herder, Barcelona 1998 (orig. Freiburg i.B. 1993) 150-165; G. Segalla, Evangelo e vangeli, Dehoniane, Bologna 1992, 102-104.

6 Em todo o NT está presente só em Jo 1,41; 4,25.

7 Este título se encontra 17 vezes em Mt, enquanto que 7x em Mc y 12x em Lc.

8 Em Mc e Lc a fórmula aparece só duas vezes em cada evangelho. Cf. R. Schnackenburg, La persona de Jesucristo reflejada em los cuatro Evangelios, 165s.

9 Seja na forma grega de didáskalos como também na forma hebraica de rabbî.

10 Existe uma abundante bibliografía, cf. U. Luz, El Evangelio según San Mateus (Mt 1-7), Sígueme, Salamanca 1993 (orig. Sürich-Köln 1985), 257-259.

11 Cf. especialmente D.C. Allison, The New Moses. A Mattheam Typology, T&T Clark, Edimburgh 1993.

12 Para um status quaestionis cf. J. Jensen, “Immanuel”, em The Ancor Bible Dictionary 3, 392-395.

13 Cf. a discussão do texto em R.E. Brown, El nascimiento del Mesías. Comentario a los Relatos de la Infancia, Cristiandad, Madrid 1982 (orig. New York 1977), 143-153.

14 Este é um dos pontos de partida da tese de W. Trilling, Il vero Israele. Studi sulla teologia del vangelo di Matteo, Piemme, Casale Monferrato (orig. Leipzig 1975), 53-58.

15 Decidimos, por problemas de tipografia, que e transcreva a letra grega eta, o a letra omega, a letra i depois de omega é iota subscripta.

16 H.E. Lona, Grcia y Comunidad de Salvación, el fundamento bíblico, Estudios Proyeitos 21, Bons Aires 1998, 134.

17 R. Penna, I Ritratti originali de Gesù il Cristo. Inizi e sviluppi della cristologia neotestamentaria II. Gli sviluppi, San Paolo, Milano 1999, 362.

18 Neste sentido, há uma continuidade com o AT a propósito do mesmo Yhwh que assegura sua própria presença no meio de seu povo: “Euestareiconvosco” (Ag 1,13; 2,4). Em Israel, a presença de Deus está particularmente tematizada em três momentos sucessivos: na teofania do Sinai, na promessa relacionada com Jerusalém, tanto por meio da monarquia davídica como também pela permanência de Deus no Templo, e depois, relacionado com a dimensão mais transcendente depois da destruição do Templo como constante proximidade de Deus com seu povo.

19 R.E. O’Tole, L’unità della Teologia di Luca. Un’analisi del Vangelo e degli Atti, EDC, Torino Leumann 1994 (orig. ingl. Wilmington 1984), vê a unidade da teologia de Lucas no tema da salvação.

20 Penna, I Ritratti originali de Gesù il Cristo, II, 364.

21 Cf. J.A. Fitzmyer, El Evangelio segundo Lucas , Cristiandad, Madrid 1986 (orig. New York 1981) 250.

22 Jo emprega o termo cháris três vezes e somente no Prólogo. Esta palavra em Lc, conforme o significado grego, adota diversos matizes, entendendo-se em geral no sentido de “favor, complacência”; mas a graça de Deus é mais: perdão dos pecados (At 13,43, cf. 39s), mensagem de salvação (At 14,3; cf. 20,24.32; 15,11). Cf. R. Schnackenburg, La persona de Jesucristo reflejada en los cuatro Evangelios, 212s.

23 Há que ter em conta que Lucas conecta a graça de Deus só com Jesus e Maria.

24 S. Zedda, Teologia della salvezza nel vangelo di Luca, Dehoniane, Bologna 1991, 14.

25 Além do termo cháris, “graça”, Lucas, mais que qualquer outro evangelista, emprega a palavra éleos, “misericórdia” (6x, contra 3x de Mt e 0x de Mc y Jo).

26 Dois títulos são particularmente importantes: sôtêr (2,11) y Christòs kyrios.

27 Cf. Lc 7,11-17 (a viúva de Naim); 7,36-50 (a pecadora); 10,29-37 o bom samaritano); 13,10-17 (a mulher encurvada); 16,1-9 (o administrador astuto); 16,19-31 (o rico epulão); 17,7-10 (o ditado sobre os servos inúteis); 17,11-19 (os leprosos); 18,1-8 (o juiz e a viúva; 18,9-14 (o fariseu e o publicano); 19,1-10 (Zaqueu); 23,39-43 (o bom ladrão); 24,13-35 (a experiência dos discípulos de Emaús).

28 Pode considerar-se como “o coração do evangelho”. Cf. L. Ramaroson, “Le coeur du toisième Évangile: Lc 15”, Bib 60 (1979) 348-360.

29 J.-N. Aletti, El arte de contar a Jesucristo, Sígueme, Salamanca 1992 (orig. Paris 1989) 184.

30 Mc: 4x; Mt: 5x: Lc 3x.

31 N. Walter, “splagchnízomai”, H. Balz-G. Schneider (eds.), DENT, Sígueme, Salamanca 1998 (orig. Stuttgart 21992), 1469.

32 Cf. Lc 1,78: “Por la entrañável misericórdia del nuestro Dios”. Cf. S. Zedda, Teologia della salvezza nel vangelo di Luca, 36.

33 R.E. Brown, Il vangelo e le lettere di Giovanni, Queriniana, Bescia 1994 (orig. Collegeville, MN 1988), 45.

34 Cf. R. Schnackenburg, La pessoa de Jesucristo reflejada en los cuatro Evangelhos, 319s.; R. Penna, I ritratti originali di Gesù il Cristo, II, 388s.

35 É por isso que só levaremos em consideração dois textos do evangelho de João (Jo 10,1-16 y 15,1-17) e outro da primeira carta de João referente à comunhão (1Jo 1,1-4). É particularmente importante o tema do simbolismo joânico do “Coração traspassado”; cf. D. Mollat, La Palavra y el Espírito. Exégesis espiritual, Sígueme, Salamanca 1984.

36 Para uma exegese mais detalhada remetemos aos grandes Comentários e ao recente trabalho de G. Zevini, “La vita di comunione tra Gesù e i suoi la vera vite e i tralci (Gn 15,1-17)”, PSV 31 (1995) 93-109. Cf. V. Mannucci, Giovanni il Vangelo narrante, Dehoniane, Bologna 1997, 284-285.

37 Mc 6,34; Mt 9,36; 18,12-14; Lc 15,3-4.

38 Mc 12,1-9; Mt 21,33-41; Lc 20,9-16; etc.

39 “Sem mim nada podem fazer” (Jo 15,5). Aqui se expressa a auto-compreensão da Igreja. Cf. R. Schanackenburg, El Evangelio según San Juan, Herder, Barcelona 1987 (orig. Freiburg i.Br. 1975) III, 122-149.

40 B. Maggioni, “La comunione nella prima lettera di Giovanni”, PSV 31 (1995) 205-218.

41 A. Dalbesio, Quello che abbiamo udito e veduto. L’esperienza cristiana nella prima lettera di Giovanni, Dehoniane, Bologna 1990, n.83.

42 O “caminhar” (peripatein, duas vezes) revelará a verdade ou falsidade da dupla comunhão. A metáfora do caminhar é significativa e deve ser tomadas em suas múltiplas implicações (cf. 2,9-11).