DOSSIÊ CENTRAL

O CARISMA NA VIDA RELIGIOSA

O ESPECÍFICO DO CARISMA DO INSTITUTO
|NA DIMENSÃO PESSOAL E COMUNITÁRIA

Maria Grazia Bianco, mssc

Premissa

Começo por olhar minha experiência de vida religiosa e a de tantos religiosos que conheço. Tenho comigo os tantos documentos que iluminam esta caminhada. Tenho comigo a oração, a liturgia. Levo comigo a reflexão da comunidade.

Minha reflexão motiva-se também pela reforma universitária, na qual gostaria de ter um papel e encontrar meu lugar.

Não quero teorizar mas escavar nesta riqueza dinâmica contida na vida religiosa, para poder continuar a maravilhar-nos com as boas sobras que o Senhor faz por nós, para descobrir novas faces do carisma. Quero penetrar, junto com vocês, na realidade variada da vida religiosa para descobrir seu frescor e redesenhar nossa vocação. Coloco nas mãos de Deus minha participação na construção de seu Reino.

Quero lembrar uma verdade muito simples, tão simples que parece infantil: no momento do nosso nascer, do nosso sim, no momento da morte, tudo acontecerá apenas com dois protagonistas, Deus e eu. Estarei só diante dele. Tudo o que direi deve lembrar estes dois pólos, mesmo quando falo do instituto. Não se trata de individualismo mas de uma realidade existencial e quotidiana. Existe a família religiosa porque existiram e existem outras pessoas que ouviram o chamado para trilhar a estrada do Fundador, à qual dão sua riqueza e vitalidade, traços que ressaltam a beleza comum e geral.

Nossa vida religiosa se insere hoje numa sociedade eficiente, competitiva, de sucesso, de fachada, de arrivismo, de fraternidade superficial e de conveniência. É uma sociedade de grande progresso, de tecnologia, uma sociedade na qual a solidariedade é de necessidade reconhecida mas, ao mesmo tempo, uma sociedade de nacionalismos religiosos e culturais, de interesses imediatos, de solidão, de ecologia, de comunicação. Habituamo-nos a denunciar os perigos e as carências desta sociedade. Desta forma passamos a considerar-nos sábios e lúcidos. Será assim m mesmo? O que tempos a dizer a esta sociedade? Cito a VC: “Tarefa da vida religiosa é tornar visíveis as maravilhas que Deus faz na frágil humanidade das pessoas chamadas. Mais do que com palavras, tais pessoas testemunham estas maravilhas com a linguagem eloquente de uma existência transfigurada, capaz de surpreender o mundo” (VC 30). A vida consagrada torna-se um traço concreto da Trindade na história para que os homens possam perceber o fascínio e a nostalgia da beleza divina.

Sempre fascinou-me o primeiro sim. Gostaria de poder sempre revigorar este sim, manter a vitalidade da primeira entrega. Muito me fizeram refletir as palavras de uma recente conversa com uma universitária: onde foram parar os idealismos da juventude, os ideais de 1968. Tais perguntas podem ser transferidas para a vida religiosa: onde se aninha o aburguesamento típico de quem encontrou uma função estável a cumprir? O aburguesamento próprio de quem fez os votos perpétuos? A vocação pode tornar-se uma realidade que vai se deteriorando e perdendo o vigor. Tenho eu consciência disto? O que faço para reagir?

Tenho intenção de fazer esta reflexão junto com vocês, em voz alta, para abordarmos diversos elementos de nosso dia a dia. A experiência dos primeiros discípulos nos ilumina. Os textos são estes: Jo 1-16: unum; Mc 14, 3-9 (Lc 7. 36-50; Mt 26, 6-13; Jo 12, 1-8) deixem que a mulher faça a unção inútil, deixem que faça este desperdício, é um desperdício de amor; Jo 21, 20-22: “Senhor, e ele? O que te importa o que peço a ele? Tu, vem e segue-me”. Existe diversidade de carisma mas um só é o Espírito (I Cor 12, 4).

Destes textos nasceram, pela minha oração, algumas palavras-chave: Cristofania, testemunho de Cristo; cristofania, como espelho da gratuidade.

E ainda, o ícone da unção em Betânia.

Nestes elementos, cristofania e gratuidade, quero encontrar as respostas para a vida pessoal e comunitária.

Basílio de Cesaréia oferece-nos uma consideração interessante sobre o Espírito Santo: “Inacessível por natureza, pode-se chegar a ele pela bondade. Enquanto tudo enche com seu poder, comunica-se somente com aqueles que são dignos, distribuindo sua força não segundo uma medida única mas em proporção à fé”. A intervenção do Espírito nos seres humanos não se dá de modo maciço e generalizado. Ele age na proporção que cada um pode acolher.

Passo a abordar alguns elementos evitando de dar por descontado aquilo que em geral damos.

1. Vocação

O fundamento da vida de cada pessoa, dos votos é a intervenção de Deus que precede a qualquer gesto, decisão, palavra nossa. Nosso Deus é anterior a tudo; ele cria, ama e chama. É o Deus do encontro, o Deus da presença. Desta forma nosso ser é iluminado. O encontro envolve as pessoas profundamente. Pensemos nos nossos encontros, nos gestos, nas palavras que são ditas e omitidas, nos olhares, no modo como são preparados os encontros, como são diferentes, no que esperamos de cada encontro.

O começo de cada um de nós é marcado por um chamado único e múltiplo: chamado a existir, a crer, a acolher o amor. Fui escolhido e minha escolha é resultado da liberdade do meu sim a alguém que me precedeu e continua a chamar-me e a pedir minha resposta. Tendo escolhido uma vez, é preciso escolher sempre.

A vocação que Deus deriva de seu amor pessoal a cada um. Trata-se de tomar consciência de ser amado por Deus.

A vocação é uma resposta pessoal a uma história de amor que Deus começou em nós. Sendo cada um único e ímpar, única e ímpar será a resposta.

Quando podemos ter certeza do chamado? Não é preciso entender muito. É preciso amar, ter fé. Ler com o coração. Ter tranqüilidade e alegria. Começar a confiar sem ver nem entender, mesmo na sensação de que a vida religiosa, hoje, possa parecer absurda. Muitos religiosos já tiveram esta sensação. A luz que foi vista uma vez deve tornar-se uma lâmpada para os próprios passos. A riqueza de carismas das congregações desorienta a pessoa que vai fundo nesta procura da verdade sofrida, amada, vivida, encarnada. Tantas são as possibilidades. Pode-se aventurar até mesmo sozinho, sem depender de ninguém, mas teria algum sentido? Integrar uma comunidade pode parecer um limite. Na verdade, a diversidade enriquece. Sermos observados constantemente pelos confrades nos desafia, nos move a sermos autênticos, a dividir espaços, a fazer-nos pequenos para dar espaço aos outros que trazem consigo aquele pedaço de verdade que eu preciso e que é parte do Todo, que potencialmente podemos ter e reconhecer como presente em nosso meio.

A vocação é um chamado pessoal que nos insere numa família. Passa a ser tarefa do chamado tornar próprio o carisma do instituto. Passo a dar minha contribuição à minha família religiosa. Participar desta família significa construir um pedacinho do Reino

É preciso conciliar a vida pessoal com a da família para não criar conflitos. Esta coexistência abre perspectivas de novas experiências e riquezas, é terreno vital para novas plantas. É preciso tomar consciência do próprio papel na construção da família. É preciso conhecer a família, sob seu carisma. Não há empenho quando não se ama. Deus chamou-me a esta aventura, à construção de um edifício espiritual comum. Colocando minha individualidade a serviço desta construção não entro em conflito mas me enriqueço.

A individualidade e a diversidade de cada pessoa, quando bem acolhidas, tornam-se um riqueza para a família e fazem crescer a todos. Cada um deve estar aberto a isso e esforçar-se por crescer.

“Responder à vocação não é coisa fácil porque é fazer de si mesmo um holocausto de amor para dar a Deus toda a glória que nosso ser pode dar-lhe” (Tincani).

Jesus reúne os seus mas não quer um rebanho de ovelhas todas iguais, cópia uma da outra. Cada uma tem sua voz, seu nome, pelo qual ele a chama. O mesmo carisma pode ser vivido em modos diversos. Trata-se de escolher, com clareza evangélica, a quem responder, a quem entregar o coração, se a Deus ou à mamona.

2. Consagração

A natureza profunda da consagração diz respeito à pessoa na sua globalidade. É a doação total de si, visando a Deus exclusivamente, a seu amor, seu projeto. Um dom que pressupõe deixar-se conquistar-se por Deus, nos passos de Jesus Cristo, um dom que nasce do fato de ser discípulos e o fundamenta ao mesmo tempo. O sentido de ser discípulos é uma experiência pré-cristã que Cristo fez sua e continua a propor. É uma experiência humana nascida de duas fontes: o relacionamento com o Mestre do qual se pretende ser discípulo e com os outros, condiscípulos ou não.

O ser discípulo começa pela escuta pessoal, que acaba no meu sim. Ser discípulo implica viver também na escuta dos outros sem cair am atitudes autoritárias. Descobrimos, então, que logo ao nascer, todos nós entramos como alunos numa escola comum que é o mundo. Entrando no seguimento de Cristo e damos nossa resposta à palavra de Deus. Esta escuta, feita mais com o coração que com o ouvido, nos familiariza com Deus e nos dá a vida.

Só o crente feito discípulo pode saborear a boa palavra de Deus e responder ao convite ao seguimento.

Discípulo do Salvador único, ontem, hoje e sempre. Tenho certeza de que o Salvador é Ele e não eu, nem meu instituto? Hoje conhecemos tantas coisas, tantas realidade que substituem a salvação: o bem-estar, a saúde, a qualidade de vida, o poder, o sucesso, a convivência, o dinheiro, ou ainda, outros substitutivos mais sutis, tais como a consciência do dever cumprido, o ritual litúrgico, o testemunho, a dedicação frenética ao trabalho apostólico.

Ser discípulo é andar continuamente atrás de Jesus que nos chama a estarmos com ele. Isto nos faz passar do endurecimento do coração à ternura e à misericórdia, a passar dos olhos fechados às necessidades à abertura dos olhos e poder ver a passagem de Jesus. Somos chamados a continuamente ler, interpretar e transmitir aquilo que nos é entregue.

A única exigência é a entrega de si mesmo, uma entrega que nos faz criativos e nos abre os olhos e talvez nos atraia a pecha de iludidos. Esta entrega assemelha-se a Pedro quando caminha sobre as águas e como no último encontro com Jesus: “Um outro te cingirá e te levará onde não queres ir”.

No seguimento de Jesus encontramos as respostas: a paz, a justiça, a solidariedade, o respeito, o reconhecimento.

Ser discípulo é uma aventura que tem um começo e não se sabe o que a caminhada nos reserva. “Chamado pessoalmente pela palavra de Deus, o discípulo põe-se seu serviço. Tem início, assim, um seguimento, cheio de dificuldades e provas, que conduz a uma crescente intimidade com Deus e a uma disponibilidade sempre maior à sua vontade” J. Paulo II, 199). O seguimento se insere na capacidade de mudar do homem, para uma direção ou outra.

Discípulos-pescadores: como respondeu alguém: talvez os discípulos foram pescadores e não camponeses porque os camponeses trabalham sempre no mesmo lugar enquanto que os pescadores devem sempre mudar de lugar, ir onde os peixes estão.

Deus não precisa de nossa consagração. Jesus nos pede o seguimento não porque tenha necessidade de nosso serviço mas para dar-nos a salvação. “Seguir o Salvador é participar da salvação assim como seguir a luz é deixar-se iluminar. É a luz que bate nele e reflete, tornando-o brilhante. Ele não dá nada à luz mas dela recebe o esplendor. Assim é nosso serviço a Deus. Nada traz de novo a Deus e Deus não tem necessidade dele. Entretanto, àqueles que o servem e o seguem ele dá a vida e a glória eternas. Confere seus benefício aos que o seguem apenas porque o seguem. Deus busca o serviços dos homens para ter a possibilidade de derramar seus benefícios sobre aqueles que perseveram no serviço. Enquanto Deus não tem necessidade de nada, o homem tem necessidade da comunhão com Deus. A glória do homem consiste na perseverança no serviço a Deus. É por isso que o Senhor dizia aos discípulos: não fostes vós que me escolhestes, mas eu que vos escolhi (Jo 15, 16). Mostrou que não eram eles a glorificá-lo mas pelo fato de o seguirem eram glorificados por ele.

A consagração a Jesus pela profissão dos conselhos evangélicos é um compromisso pessoal a viver com outros e para outros. O “proprium” de um instituto precisa ser evidenciado? O que entendia quando entrei na minha congregação? Por que entrei? Por que continuei? O que me atrai? O que dou ao meu instituto?

O caminho da descoberta do carisma do instituto deve ser progressivo e acompanhado pela formação à liberdade e ao esquecimento de si. A relação com o Fundador deve ser personalizada; cada um de nós o interpreta e nós o tornamos vivo, hoje.

3. Os votos

Os votos são um meio para traduzir em concreto a pertença a Deus.

A castidade nos leva à experiência do amor a Deus na totalidade do coração, a despojar-nos para Deus, (tornar-nos aptos a Deus, na expressão de Tomás de Aquino).

A pobreza é outro modo de despojamento em face de Deus, para estar mais perto dos pobres, descobrir a própria pobreza e, assim, colocar-se nas mãos de Deus.

A obediência nos põe na escuta de Deus, sem o que nossa vida torna-se absurda. A obediência nos configura a Cristo na mais profunda expressão de sua união com o Pai. É a experiência da liberdade cristã plena que noz traz a paz de coração e a justiça de Deus. Podemos ser autênticos ministros da paz e da justiça de Cristo num mundo que tem tanta necessidade delas.

“Recuperar a simplicidade e a pobreza autênticas. Ao longo dos séculos muitas congregações religiosas enriqueceram, coisa que pode-se justificar a partir dos projetos importantes. Entretanto a vida religiosa era mais atraente quando éramos mais pobres. Busquemos de novo esta liberdade” (Redcliffe, op., entrevista)

“A castidade é um reflexo do amor infinito que une as três Pessoas divinas na profundidade misteriosa da vida trinitária” (VC 21). Corações purificados que, na fé, vêem a Deus”. A castidade encontra suas raízes na solidão na qual conhecemos intimamente o amor concreto de Deus por nós e somos libertados dos condicionamentos terrenos.

A obediência comunitária tem necessidade de solidão que encontra suas raízes na fidelidade a Deus. Este clima permite experimentar a variedade das tarefas, vistas como manifestações diversas de um ministério comum. Viver em contacto com Deus consente-nos reagir de modo criativo diante das emergências do dia a dia sem deixar-nos tomar pelo pânico.

Os votos são entendidos como modo de viver uma relação especial de discipulado a Jesus.

4. Vida fraterna

“Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos tenho amado. Ninguém tem amor maior do que este: dar a vida por seus amigos. Não fostes vós que me escolhestes mas eu é que vos escolhi. Meu mandamento é este: amai-vos uns aos outros” (Jo 15, 12-17). “Quanto ao amor fraterno não há necessidade que vos escreva, porque vós mesmos tendes aprendido a amar-vos uns aos outros. Nós vos exortamos a amar-vos sempre mais” (Tess 4,9).

Sermos irmãos significa ser membros de uma família, a família de Deus. O que deve estar na base: Os compromissos, o afeto, a tolerância, a sinceridade, a simpatia?

“Alguns cristãos vivem neste mundo ao redor da palavra de Deus, com outros cristãos. Outros estão sós, semi-dispersos. O que lhes é negado pela experiência, eles o tem pela fé. Assim foi com João em seu exílio na ilha de Patmos onde ele celebra com sua comunidade liturgia celeste ‘em espírito, no dia do Senhor’ (Ap 1,10) e ainda, a comunhão cristã é tal por meio de Jesus Cristo. Mesmo que se trate de um breve encontro, pertencemos uns aos outros por Jesus Cristo” (D. Bonhoffer, Vida comum).

Aquele que encontro, que dorme no quarto ao lado, com o qual tomo refeição, rezo, não é simplesmente uma pessoa, é alguém que Jesus redimiu, chamou e pôs a meu lado. É um presente de Jesus para mim. Antes que nos conhecêssemos, Deus nos quis juntos.

A comunidade é o lugar onde se faz a quotidiana passagem do eu ao nós, da busca das minhas coisas às coisas de Jesus e do Pai. Trata-se de uma passagem evangélica, sinal do acolhimento de Cristo e de seu estilo de vida. Solidão para encontrar nossa identidade comunitária. Na solidão podemos reconhecer como colocar nossos talentos pessoais a serviço de uma tarefa comum. Os talentos pessoais são um caminho para Deus.

5. Oração

A oração não é automática. É preciso aprender. Este aprendizado acontece na comunidade. Nossas comunidades devem tornar-se escolas de oração. Entretanto, a oração já está dentro de nós como dom de Deus, como presença do Espírito Santo que invoca o Pai em nós. Trata-se de passar de eu superficial ao eu profundo, ao coração, onde mora o Espírito Santo.

Solidão para encontrar Deus como direção, como aconteceu com Elias. Na solidão descobrimos nossa inquietude, agitação, ânsia de resolver tudo logo, vontade de não deixar nada pendente. Gostaríamos de deixar a solidão, mas se tivermos um pouco de paciência e nos forçamos a permanecer na solidão chegaremos ao conhecimento do Senhor de nosso coração, aquele que nos faz conhecer quem somos de verdade.

A oração pessoal e comunitária são essenciais a qualquer hora. Que tipo de oração? Uma oração de todo o ser. A oração da boa vontade, como diria Catarina de Sena. Que ritmo? O importante é encontrar o ritmo adequado. É como quando se faz uma longa caminhada. Um bom ritmo nos leva longe, sem cansaço. Deve-se encontrar também um ritmo físico, psíquico, cronológico. Uma oração que reconhece a prioridade de Deus. Permanecemos diante dele improdutivos, inúteis, sem nada a mostrar, provar e deixemos que ele ocupe nosso vazio.

Oração contemplativa: contemplar o rosto de Cristo para fazê-lo resplandecer em nosso rosto. Descobrir, procurar o verdadeiro absoluto, não um substitutivo qualquer.

Viver no pensamento e nas ações aquilo que se diz. A oração verbal não basta às nossas exigências.

Rezar e agir estão juntos. Somente quem age bem pode rezar bem. Rezar e sentir solidariedade caminham juntos. A oração torna o coração solidário. “Devemos carregar conosco o lenço de Verônica (sua imagem impressa no nosso coração), como também a unção de Betânia.

6. Compromisso apostólico

Como deve ser? Pessoal? Comunitário? Deve responder a interesses pessoais ou comunitários? “Jesus poderia ter carregado a cruz sozinho. Entretanto, ele permitiu que Simão de Cirene o ajudasse para lembrar-nos que podemos tomar parte em seus sofrimentos e colaborar em sua obra” (J. H. Newman).

O único interesse será o de servir a Deus nos irmãos. Nisto faremos coincidir nossos interesses pessoais com os da comunidade. Diante das divergências, indivíduos e comunidade devem interrogar-se sobre qual seja o fim último. O indivíduo nunca exercerá sua missão como coisa própria e a comunidade não fará impor suas exigências sobre as do evangelho. A vida religiosa deve levar-nos ao encontro das pessoas, tecer relações com as pessoas, sem ficar a olhar a partir de cima.

7. Administração dos bens

Neste quadro geral de empobrecimento (permanecendo nas declarações de Maccise sobre a pobreza), a vida religiosa continua a beneficiar-se de muitos bens. Parece que só os religiosos não se ressentem da falta de bens e de dinheiro. Às vezes tem-se a impressão de que o dinheiro possa comprar tudo. Pode-se comprar vocações?

Tenho uma pergunta bem precisa: que bens administramos? Para quem os administramos? Para fazer o quê? É possível estar ao par de tudo e participar? Como?

8. Serviço de governo

O serviço de governo, da autoridade será adaptado ao tempo atual, na busca da garantia da vontade de Deus. Trata-se de um serviço de orientação, de guia.

Será indispensável aos que exercem o serviço de governo que façam atenção ao evangelho. Pode parecer fácil. Entretanto, é preciso ter os olhos e os ouvidos bem abertos para entender, para conhecer as implicâncias daquelas palavras, para entender a linguagem do evangelho. Sabemos que a vida religiosa encontra sua garantia na escuta da palavra para conhecer a vontade de Deus, e poder, assim, obedecer. Isto é o que garante o serviço da autoridade. Esta deve ser a grande a preocupação e nunca deve ser superada por qualquer outra ocupação.

Cito um trecho de uma entrevista dada por P. Redcliffe, op. O jornalista lhe pergunta: “Vivemos um período caracterizado por uma grande crise de vocações. Como um jovem busca a vida religiosa e como a abandona?” A resposta: “Devemos dar aos jovens a liberdade de responder aos novos desafios. Eles não tapam buracos, nem recuperam o passado. Ninguém entrará numa congregação apenas para ajudá-la a sobreviver. As ordens religiosas nada tem a ver com sobrevivência mas com morte e ressurreição. Não importa se no futuro teremos menos comunidades ou se uma congregação fica reduzida à metade do que era. O que importa é que as comunidades sejam vivas e sejam sementes de futuro. Prefiro três comunidades vivas a dez que lutam por sobreviver”. Outra pergunta: “Nasce ainda, entre os muros dos conventos, algum Tomás de Aquino, Francisco de Assis, Catarina de Sena?”. Resposta: “Deus criou essa gente e não os clona. A cada geração surgem confrades que são únicos, que têm sua própria santidade. Quando a ordem dominicana foi fundada não se imaginava que um dia haveria um Bartolomeu de las Casas combatendo pelo direito dos índios ou um Beato Angélico, a pregar através da pintura”.

O desafio é saber acolher os santos escondidos em nossas comunidades e que podem surpreender-nos. O rosto da santidade é o que mostra a glória e a beleza de Deus vivo em nosso meio. Num mundo sempre mais violento devemos ter coragem para sermos um sinal de Deus. Em alguns lugares do mundo os religiosos enfrentam os perigos do martírio. Outros precisam enfrentar a incompreensão e a crítica, devem ter a humildade de tentar e falhar. Temos necessidade da santa coragem de quem pôs toda a sua confiança em Deus.

Uma palavra de ordem para quem exerce o serviço de governo hoje é o discernimento. De minha parte prefiro o verbo latino “conferre” = colocar junto. Colocar juntas as palavras de Deus, tanto aquelas reveladas quanto aquelas vividas pelas pessoas. O serviço da autoridade fundamenta-se no colocar juntas estas palavras, como Maria, de modo a poder colher a intenção de Deus a respeito das pessoas e a respeito do instituto.

9. Abertura aos leigos e à Igreja

Não trata-se de buscar maior contacto com algumas pessoas, aquelas que não podemos dispensar, mas de uma atitude interior que nos envolve profundamente. Envolve nosso modo de viver a Família religiosa. A mudança de mentalidade significa capacidade de aceitar uma outra cultura. Recorro a um conceito de um autor búlgaro, voltando ao seu país após um período na França: transculturação, ou seja, aquisição de um novo código, sem perder o anterior.

Outra questão é a idéia de que nada temos a aprender dos leigos. Todo o contacto com quem é diferente é enriquecedor, e ambos se beneficiam. O diálogo exige a paciência de entender as diferenças e considerá-las como uma riqueza. Os consagrados, como todos os seres humanos, são pessoas que estão caminhando por uma estrada de perfeição, com todas as dificuldades derivadas da natureza ferida pelo pecado, da vida em si mesma, do contexto cultural. A obra da natureza não foi confiada exclusivamente aos consagrados e os outros são apenas destinatários do trabalho deles. Quem salva é Deus e todos somos seus cooperadores, em diversidade de ministérios, reciprocamente necessários.

10. Seguindo Jesus com luz própria

Queremos seguir Jesus, acompanhar seus passos, captar sua energia, seu amor, sua criatividade, sua fantasia. Do contrário será uma caminhada pesada, carregando nosso próprio peso. Há uma pergunta, sempre atual: como passar do saber ao viver? Somos tentados a pensar que se trata de uma dificuldade de passagem: do início da formação aos votos perpétuos. Estranhamos que não somos aquele discípulo que gostaríamos de ser, que ama totalmente e com coerência. Convém levar em consta o seguinte:

* pode haver elementos e situações negativos, mas compatíveis com ser discípulo de Cristo, compatíveis com a santidade (deve-se reconhecer e aceitar certas coisas porque nada tiram de Deus aos outros e a mim mesmo, coisas que nos fazem lembrar as palavras de Paulo “basta-te minha graça”);

* pode haver incoerências que bloqueiam o crescimento da pessoa e impedem sua caminhada.

Que significado tem meu seguimento de Cristo? Sobre o que se fundamenta? O que oferece? O que pede? A que posso renunciar?

Um ponto provocador no seguimento de Jesus: o estudo. Não pode-se entender bem o sentido da própria luz sem dedicar-se a fundo ao estudo. É fácil também entender mal seu sentido e usá-lo como desculpa evasiva, como algo para aparecer, ou por outra razão qualquer.

A lealdade não nos permite viver na mediocridade, nem construir um ninho para si, confortável, que serve como referencial para descartar tudo o que não combina com este modo de seguimento. É bem diferente da confiança que cada um tem naquilo em que crê a fundo.

“O consagrado de amanhã deverá estar bastante apegado à cruz de Cristo e ter os ouvidos bem atentos a cada cultura para poder dizer, através de sua existência, que não existe nada mais sábio para o homem que deixar-se iluminar pela luz de Cristo”. Assim se expressa uma pessoa no início de sua resposta a Jesus e assim falavam os Padres da Igreja (penso em Clemente de Alexandria que fala de Ulisses que quer fugir do perigo das sereias, mas quer ouvi-las cantar e deixa-se amarrar no navio).

O encontro transforma-se em vida de amor e dom de si na gratuidade, como na unção em Betânia. Deixem que aplique uma unção “inútil”.

Uma vida repleta e amparada pelo amor de Jesus, numa relação existencial com ele. Que vida brota disto?

- um estilo de vida interior profunda;

- uma vida não acomodada, numa caminha de formação permanente;

- um estilo que leva às coisas do Senhor. Aos doze anos Jesus deve ocupar-se das coisas do Pai;

- nos faz perceber que Deus opera maravilhas na frágil humanidade chamada;

- um estilo de solidão que nos oferece um tipo de amor que transcende as relações inter-pessoais;

- um estilo de acolhimento da pequena semente que Deus depõe;

- um estilo de iniciativa, de gratuidade;

- um estilo de deixar-se tornar pão, o pão da eucaristia, o pão da comunhão, do dom;

- um estilo de atenção ao mistério;

- um estilo de escuta;

- um estilo de parresia;

- um estilo de vida ordenada, sadia, simples, de serviço, transfigurada, capaz de surpreender o mundo, que deixa entrever o fascínio e a nostalgia da beleza divina na liberdade (do medo, da raiva, do individualismo incontrolado), de alegria (que tem sua origem no estar com o Senhor), na compaixão e na fome de espiritualidade.

Conclusões

Jesus chama hoje: a quem, como?

Deus chama um a um e põe juntas as pessoas para que façam o que ele faz com o Pai, o unum (Jo 10, 1-16). Neste unum cada um tem sua identidade própria, sua fisionomia e sua tarefa. Não há lugar para clonagens. O povo de Deus, o rebanho de Jesus, a videira da qual o Pai é o vinhateiro, é um conjunto de seres distintos; para cada um há uma história de amor, do amor de Deus que toma conta daquela pessoa (Jo 21,20-22).

Quarta feira da Semana Santa deste ano eu estava na basílica de S. Maria, em Florença, quando foi inaugurada a restauração do Crucificado de Giotto e o afresco de Masaccio que representa a Trindade. O dominicano que falou na ocasião disse que “admirar de novo aquele crucifixo era um convite a colocar o Crucificado no centro de nossas vidas. É ele que revela o amor do Pai”. A centralidade de Cristo é lembrada por Paulo na carta aos coríntios: “Penso que não haja outro em vosso meio a não ser Cristo, e o Cristo crucificado. Estive em vosso meio, fraco, temeroso. Minha palavra e minha mensagem não estavam baseadas em discursos persuasivos ou cheios de sabedoria, mas na manifestação do Espírito e de seu poder. Para que a vossa fé não fosse fundada na sabedoria humana mas no poder de Deus” (I Cor 2, 2-5).

Este deveria ser o ideal da pregação evangélica. Outro motivo é a fraternidade. Cristo, ao abrir os braços e mostrar o lado aberto, reúne a todos que estão sob a cruz, acolhendo-os.

O cardeal Newman rezava assim: “Ó meu Senhor! Faz que a tua cruz seja eficaz, para mim mais que para todos, a fim de evitar que eu tenha tudo em abundância sem nada levar à perfeição”. “Faz, ó Jesus, que nos entreguemos a ti esperando que nos tenhas reservado uma sorte igual à tua”.

Maria, a pessoa que nos ensina a ser vigilantes para acolher os sinais da passagem de Deus e descobrir que ele chama não para dedicar-nos a alguma coisa mas para estejamos disponíveis a oferecer-lhe de novo todo o nosso ser.

Síntese

Quis falar de pessoas que vivem uma vida que não está no centro dos fatos, não chama a atenção e não deixa marcas profundas pelo caminho, a vida dos palhaços, aqueles que aparecem entre uma grande exibição e outra, movem-se galhofamente, caem e fazem rir, após a tensão criada pelos heróis (trapezistas, domadores...). Diante deles reagimos com simpatia, sem admiração, mas com compreensão, com sorriso, sem tensão).

* Deus chama e nos faz aptos a uma resposta original, uma história de encontro.

* De tantos ele quer fazer uma unidade, sem conformidade, um povo que ele forma.

* A cada um Deus dá um carisma. Cada um é indispensável.

* O estilo de resposta é o do amor-gratuidade, como na unção em Betânia.