Loreto, 14 de fevereiro de 2002
Prot. N. 32/2002
Queridos confrades
Temos o prazer de entregar-lhes uma reflexão que este ano substitui a mensagem de 14 de março e da Solenidade do Sagrado Coração de Jesus. É uma reflexão em vista do ANO DEHONIANO e de preparação aos Capítulos provinciais e geral. Proclamamo-la a partir de um lugar especial, muito querido a nosso Fundador: o “Santuário da Anunciação e da Encarnação do Senhor” de Loreto (Itália), chamado a “Santa Casa”, porque, segundo uma antiga tradição, aqui foi reconstruída parcialmente a casa onde Nossa Senhora viveu e recebeu, em Nazaré, o anúncio do Anjo.
É um lugar que P. Dehon visitou com relativa freqüência e que sempre evocou com emoção. Aqui ele esteve com seus pais, a 31.10.1868, antes de sua ordenação sacerdotal; voltou com seu Bispo a 14.02.1877, no momento de discernir definitivamente sua vocação religiosa; e, de novo, peregrinou a este lugar a 03.04.1894, para recomendar à Mãe de Deus sua Congregação.
Justamente nesta ocasião, em Loreto, escreveu uma breve carta ao P. Estanislao Falleur na qual revela um segredo, profundamente ancorado em sua experiência de Deus, declarando que ali teve origem a Congregação em 1877, e que, por conseguinte, deseja que a partir dali ela possa renovar-se vitalmente.
Esta dupla afirmação - a memória de Loreto na origem do projeto de fundação da Congregação, e a espera de encontrar ali nova vida - levou hoje a Comunidade de Roma I-II e outros confrades de Itália (IS e IM) e dos USA, ao Santuário da Santa Casa, para celebrar a Eucaristia no mesmo altar onde P. Dehon, há 125 anos, a 14 de fevereiro de 1877, durante a Missa e a oração neste lugar, sentiu e acolheu uma graça especial em relação ao que seria seu projeto definitivo de vida consagrada ao amor e à reparação do Sagrado Coração de Jesus, para o serviço do Reino e para a santidade da Igreja, projeto que começou a ser realidade no dia 28 de junho de 1878, quande P. Dehon emitiu seus primeiros votos.
I. ano Dehoniano
O 125° aniversário de vida religiosa de P. Dehon, e de início de nossa Congregação, constitui para nós um dom precioso que temos que agradecer ao Senhor, e um tempo favorável, um “kairós”, a ser valorizado. Por isso consideramos importante vivê-lo e celebrá-lo como um ano particular, que declaramos oficialmente “Ano Dehoniano”, a partir deste dia 14 de fevereiro de 2002 até 28 de junho de 2003.
Será um ano longo, de 16 meses e meio. Como data inicial tomamos aquilo que o próprio P. Dehon indicou como origem espiritual do “Projeto da Congregação” (14.02.1877). Dia decisivo de sua vida, no qual amadureceu seu discernimento pessoal sobre a modalidade de seu chamado à vida religiosa, dia em que se inspirou acerca dos fundamentos de nossa Congregação.
Concluiremos o “Ano Dehoniano” a 28 de junho de 2003: 125° aniversario do dia que P. Dehon emitiu seus primeiros votos, data em que P. Dehon reconhece explicitamente como dia da fundação de nossa Congregação (cf. NHV XIII, 100).
A coincidência providencial que este ano terminará com a solenidade do Coração de Jesus e a memória litúrgica do Imaculado Coração de Maria, manifesta a unidade entre estas duas vidas, estas duas pessoas, estes dois corações, em torno do único projeto salvífico de Deus. Ambos, Jesus e Maria, respondem com o “Aqui estou” que possibilita a Encarnação do Filho de Deus e a realização do desígnio de amor de Deus para com a humanidade. Ressaltam-se também os elementos cristocêntricos e marianos de nossa espiritualidade específica.
Abrimos este “Ano Dehoniano” com as mesmas palavras de P. Dehon escritas ao P. Falleur:
“Foi ali (na Santa Casa) que nasceu a Congregação em 1877".
Possa ela re-encontrar aqui, hoje, uma nova vida” (cf. Carta B. 20/3).
Ambas as frases deveriam marcar o itinerário pessoal de fé, de serviço e de esperança de cada SCJ, durante este ano, de modo que façamos uma memória atualizada de um acontecimento que se inscreve na história da salvação de muitas pessoas concretas.
A memória somente não basta; deve converter-se em profecia de vida nova a fim de que a Congregação seja hoje útil e significativa para nós, para a Igreja e para o mundo.
II. A Santa Casa de Loreto: “Foi ali que nasceu a Congregação em 1877”
Esta afirmação de P. Dehon nos surpreende. Sabemos que a Congregação nasceu realmente em Saint-Quentin. Por outro lado, P. Dehon vinha pensando na possibilidade de fundar um novo Instituto já desde dezembro 1876 (cf. NQT XVI/1900, 34). A decisão foi explicitamente manifestada somente na primavera de 1877 (cf. NHV XII, 164), ao falar com seu Bispo, Dom Thibaudier (08.06.1877), de quem recebeu seu consentimento oral (25.06.1877) e logo depois, escrito (13.07.1877).
Sobre o tempo em que P. Dehon amadureceu sua decisão, e sobre os motivos que o levaram a fundar a Congregação, escreveram muito seus biógrafos e o próprio P. Bourgeois no n. 9 de Studia Dehoniana (cf. STD 9, 1978: “Le P. Dehon a Saint-Quentin 1871-1877. Vocation et Mission”).
A peregrinação a Loreto, neste contexto, passa quase desapercebida, se não fosse pela breve alusão que mencionamos acima. Em todo caso, fica sempre como uma etapa intermediária, não tanto cronológica, mas de ordem espiritual, que deve ser inserida entre aquelas “graças pessoais e iluminações recebidas para a preparação e a fundação ...”, experiências profundas do Senhor, diríamos hoje, que P. Dehon aceitou sempre com muita atenção e às quais alude em seu diário (cf. NQT XLIV/1924, 138).
Para o P. Bourgeois, “a graça de Loreto pode estar no início de um certo itinerário, não tanto em vista de uma fundação propriamente dita, mas em função de uma entrada na vida religiosa sob o signo do Ecce Venio e do Ecce Ancilla” ... “não se trataria de uma idéia, e menos ainda de uma decisão de fundar, mas de uma orientação mais clara acerca de um certo espírito, ou começo, inconsciente e misterioso, daquele trabalho progressivo que deveria ainda amadurecer em sua alma, em Saint-Quentin, na primavera de 1877” (cf. STD 9, 1978, 174). Trata-se, portanto, de reconhecer uma graça, ordinária mas preciosa, na gênesis e na concepção da Congregação mesma, que o levou a preparar-se e a querer fundar “uma Congregação, ideal de amor e de reparação ao Sagrado Coração de Jesus ” (cf. NHV XII, 163).
Loreto, como “lugar” onde nasceu a Congregação, não é um lugar histórico, mas lugar de uma experiência espiritual que inspira o projeto de fundação de P. Dehon. Algo que pode estar vinculado a outras experiências vocacionais de P. Dehon: à do Natal de 1856, quando sentiu seu chamado ao sacerdócio, e à da peregrinação para a Terra Santa que confirmou sua decisão de ser sacerdote. Loreto está mais vinculada com o patrimônio espiritual da Congregação, e de toda a Família Dehoniana, que com o surgimento da Obra como tal.
De fato, P. Dehon situa no interior da Santa Casa seja o acontecimento da Anunciação e Encarnação do Senhor, seja o mistério da vida escondida de Jesus em Nazaré. Ambos estes fatos inspiram a espiritualidade dehoniana, convertendo-se em elementos essenciais de seu itinerário de vida religiosa-apostólica SCJ. Devemos considerá-los como pedras basilares de nosso Instituto e de todo o “Projeto de vida evangélica” de P. Dehon que hoje inspira também outras vocações consagradas e leigas que formam conosco a Família Dehoniana.
Tentaremos chamar a atenção para algumas reflexões de P. Dehon no Diretório Espiritual. Trata-se de uma leitura não literal, mas rápida e livre, saboreando seu conteúdo essencial. Deste modo abrimos um capítulo que não queremos esgotar nem fechar. Cabe a cada um de nós adentrar esta porta aberta e iniciar um percurso que será rico, longo e profundo, segundo nossa intuição e capacidade de avançar nele, e segundo o que Espírito nos fizer compreender.
1. O “Ecce Venio”, o “Ecce Ancilla” e nosso patrimônio da Congregação
Loreto é um lugar simbólico que nos conduz a Nazaré, onde se nos revela o mistério do Senhor e onde podemos fazer uma experiência fundante. Ali a fé da Igreja nos leva a conformarmo-nos com a atitude fundamental do Verbo que se encarna, e com a atitude de Maria, filha primogênita e imagem da Igreja, que se associa plenamente à obra de seu Filho. O “sim” de Maria permite a Encarnação do Verbo, fato salvífico que transforma radicalmente a história e o destino da humanidade.
O P. Dehon resume todo este mistério no Ecce Venio de Jesus e no Ecce Ancilla de Maria. Para ele, o Ecce Venio “foi a regra de vida” de Jesus (cf. DSP II, cap. I, 1), e o Ecce Ancilla, a atitude que resume toda a vida de Maria (cf. DSP II, cap. II, 1).
A carta aos Hebreus põe nos lábios de Jesus o Salmo 40,7-9: “Não te agradam nem holocaustos, nem sacrifícios pelo pecado, então, eis-me aqui: Aqui estou, eu venho... para fazer, oh Deus, tua vontade” (Hb 10,6-7). Todo o drama humano e o projeto de amor de Deus Pai é colocado nos ombros de Jesus.
O Ecce Venio é uma síntese da vida e da obra de Jesus, feita oferenda agradável ao Pai, sacrifício perfeito, vítima sem mancha, realizado na plenitude do Espírito, para purificar nossas consciências das obras que levam à morte, a fim de que sirvamos ao Deus vivo (cf. Hb 9,14).
O sacrifício de Jesus é sua adesão à vontade salvífica do Pai. Não se limita somente a boas intenções ou princípios, mas envolve o drama de toda sua existência: encarnação e vida filial na obediência até a paixão, morte e ressurreição. É uma entrega livre, uma oblação, por amor ao Pai e aos homens, que ele realiza em sua próprio corpo, ou seja, em sua condição humana, passando pessoalmente pela prova e pelo sofrimento, “para aperfeiçoar os que conduziria à salvação” (cf. Hb 2,10; 2,18; 5,9). Deste modo, a humanidade, entrando no movimento de obediência de Cristo, alcança sua perfeição e é transformada e penetrada pela santidade divina.
O P. Dehon dedica muito espaço para falar do Ecce Venio. Não é uma atitude passiva de Cristo: é a força que o move a realizar a obra da redenção, de reconciliação da humanidade com Deus, de anúncio do Reino, de solidariedade e evangelização dos pobres e dos pequenos; de misericórdia para com os publicanos, pecadores e prostitutas; de ensinamento ao povo e formação de seus discípulos; de compaixão pelos enfermos e pelos que sofrem; de entrega à sua Igreja na Eucaristia. (cf. DSP II, cap. I, 1.2.5).
O “Ecce Ancilla” de Maria é o sinal de sua abertura total ao desígnio divino da salvação, declarando-se disponível a colaborar com ele. Maria, na obediência da fé, seguindo a tradição bíblica de Abraão, dos profetas e de todos os crentes, abandona-se a Deus, deixa-se conduzir por Ele. Acolhe sua Palavra, crendo que para Ele nada é impossível. Desta maneira cria espaço para Deus em sua mente, em seu coração, em seu corpo, em sua experiência de mulher, em seus projetos e em sua história. Entrega ao Senhor todo seu futuro, sem pôr condições. Não pretende entender nada mais além dos dados da fé, disposta a vivificar em seu coração a Palavra de vida, que toma carne em sua próprio ser.
Para P. Dehon o Ecce Ancilla de Maria equivale à mesma disponibilidade de Jesus no Ecce Venio. É uma disponibilidade em plena relação com o mistério da oblação de Jesus; pelo que, se converte em colaboradora primeira da missão de seu Filho. Aceitando a Palavra que se faz carne nela, Maria ficará sempre sua associada na condição de “Serva do Senhor”. É um serviço para seu Filho que ela leva a cabo aos pés da cruz, para prosseguir no serviço da Igreja, de quem é filha maior e mãe ao mesmo tempo. Como tal, partilha sua vida pela causa de seu Filho e da Igreja, com quem peregrina ao longo da história (cf. DSP II, cap. II, 1).
O n. 6 de nossas Constituições resume, desta forma, o Espírito que P. Dehon quer transmitir a seus filhos: “Ao fundar a Congregação dos Oblatos, Padres do Sagrado Coração de Jesus, P. Dehon quis que seus membros unissem, de maneira explícita, sua vida religiosa e apostólica à oblação reparadora de Cristo ao Pai pelos homens. Esta foi sua intenção específica e original e a índole própria do Instituto (cf. LG e PC); esse o serviço que a Congregação é chamada a prestar à Igreja”.
Na expressão do mesmo P. Dehon: “Nestas palavras: Ecce Venio..., Ecce Ancilla..., encerra-se toda nossa vocação, nosso fim, nosso dever, nossas promessas” (Dir. I, 3).
Em seguida, P. Dehon, no Diretório Espiritual, acrescenta: “Em todas as circunstâncias, em todos os acontecimentos, para o futuro e para o presente, basta o Ecce Venio, desde que não esteja somente nos lábios, mas também na mente e no coração. Ecce Venio: “Aqui estou, eu venho... para fazer, oh Deus, tua vontade” (Hb 10,7). Eis-me aqui, pronto a fazer, a empreender, a sofrer o que tu quiseres, o que tu me pedires” (DSP I, 3).
“O Ecce Venio (Hb 10,7) define a atitude fundamental de nossa vida... e configura nossa existência com a de Cristo, para a redenção do mundo e para a glória do Pai” (Const. 58). “Pelo seu Ecce Ancilla (Maria), incita-nos à disponibilidade na fé: ela é a imagem perfeita de nossa vida religiosa” (Const. 85).
2. A vida escondida de Nazaré
Para P. Dehon, a Santa Casa, além de ser testemunha da Encarnação do Verbo, resume a mensagem profunda da vida humilde e escondida de Jesus, e de toda a Sagrada Família, em Nazaré.
Nazaré é um santuário silencioso e humilde, onde Jesus, Maria e José, em unidade de corações, inteiramente submissos à vontade de Deus, através de uma vida de pobreza, de oração, de silêncio, de trabalho e de sacrifício “concorrem à obra da redenção, cada um de acordo com sua missão específica” (cf. DSP II, cap. I, 3). “Nazaré é a escola onde começa a entender-se a vida de Jesus; é a escola onde se inicia o conhecimento de seu Evangelho” (Paulo VI, Alocução de 05.01.1964). Para P. Dehon, Nazaré é o lugar e o tempo onde ganha corpo e expressão concreta o “EcceVenio” de Jesus, o “Ecce Ancilla” de Maria, a disponibilidade silenciosa de José.
Nazaré nos faz penetrar na realidade da Encarnação do Verbo, anulando a infinita distância entre Deus e o homem. Com efeito, “O Filho de Deus, com sua encarnação uniu-se, de certo modo, com toda a humanidade. Trabalhou com mão de homem, pensou com inteligência de homem, agiu com vontade de homem, amou com coração de homem” (GS 22). “Fixando sua residência ” entre nós dignifica toda nossa existência: faz-se nosso próximo, nosso vizinho; solidariza-se com nossas lutas, dores, alegrias e esperanças; partilha nossa história; nos conduz a descobrir o valor de todas as coisas, da vida humana, das relações com os outros, das situações e acontecimentos que plasmam o cotidiano. Também assume os condicionamentos de seu tempo, de sua geografia e de sua cultura. Submetido a uma pobreza real, Jesus, como humilde artesão, pertence ao mundo do trabalho, com tudo o que isto significa (cf. Laborem Exercens, 26), vivendo de seu trabalho. Cabe notar que a visita de P. Dehon a Loreto, no ano 1894, coincide com o tempo mais problemático, porém também mais ativo de sua vida, que deu asas a todos os seus sonhos missionários e começou a deslanchar sua pregação social.
Nazaré é a proposta de um projeto de vida marcado pela busca e pela adesão à vontade do Pai: salvar o mundo, tirá-lo da cegueira do pecado, sanar suas feridas, reparar seus males, devolver dignidade à pessoa humana e a todas as classes sociais, realizar a obra do Reino e a glória de Deus. É um projeto que tem uma modalidade própria e uma pedagogia coerente. Para Jesus, implica assumir a condição de servidor, aniquilar-se, ocupar-se das coisas do Pai, submeter-se à autoridade de Maria e de José, saber esperar a “hora” de Deus. Para Maria e José, implica percorrer um caminho desconhecido e imprevisível, guardando na memória e no coração os acontecimentos e a palavra de Jesus, tratando de descobrir neles a harmonia do plano divino.
Nazaré tem uma linguagem própria que, segunde P. Dehon, o mundo nem sempre compreende. Põe em evidência os critérios desconcertantes do Evangelho, a loucura da cruz, a sabedoria de Deus, não com discursos teóricos, mas através da prática de Jesus.
Finalmente, Nazaré é, para P. Dehon, um ponto onde conformar e confrontar nossa vida SCJ, pessoal e de Congregação. Por isso, através da “recordatio mysteriorum”, nosso Fundador, cada manhã, nos convida a peregrinar a Nazaré, para entrar em contato com o mistério da Encarnação, que se realiza e se manifesta na história cotidiana de cada pessoa, do mundo e da Igreja (cf. THE 7). Individualmente, nos convida a submeter-nos e a conformarmos à vontade divina, atentos ao desígnio concreto de Deus, sem nos perdermos em caminhos, formas e meios que Deus não deseja.
P. Dehon lembra que a Congregação “encontrará proteção na obscuridade, no despojamento de todo reconhecimento exterior, na pobreza, na humildade e no esquecimento” (cf. DSP II, cap. I, 3). Nazaré nos chama à intimidade com Deus, “a uma vida oculta com Cristo em Deus” para que sejamos associados à sua glória, quando Cristo, que é nossa vida, se manifestar (cf. Col 3,3-4).
III. “Possa (a Congregação ) reencontrar Aqui, hoje, nova vida”
A segunda frase da carta de P. Dehon ao P. Falleur, sobre o significado da Santa Casa de Loreto, não é menos surpreendente que a primeira. Encontramos nela quatro termos que merecem nossa atenção: “re-encontrar” - “aqui” - “hoje” - “vida nova”.
Nosso Fundador afirmou com freqüência sua convicção de que a Congregação era e permaneceria uma obra de Deus, que requeria generosidade e fidelidade constante e renovada. Portanto, voltar às origens de sua inspiração é reapropriar-se de sua “graça fundante”. Não é, de forma alguma, voltar atrás no tempo, mas descer às raízes e fundamentos do Instituto na busca do essencial e carismático, como nova resposta de vida.
1. “Re-encontrar”
O re-encontro supõe que algo foi perdido, ou que uma determinada relação foi interrompida ou alterada. Em todo caso, é sempre a expressão de voltar a algo que, em sua origem, era diferente. É a afirmação de que existe algo que se pode ou deve melhorar. Porém, é também um convite a aprofundar um dom recebido, que ultrapassa todo alcance histórico. É um chamado a partir de novo, como Abraão, com confiança; sem ter a clareza total; esperando contra toda esperança; dispostos a sacrificar o próprio filho da promessa.
Nos perguntamos por que P. Dehon usa esta expressão. Temos uma resposta quando relemos sua história. Sabemos então que, nesta época (1889-1896), P. Dehon vive talvez a maior prova de sua vida, que o leva a dizer: “Esta é uma provação mais dolorosa que a do Consummatum est. O que fazer? Sinto-me quebrado” (NQT IV/1889, 86). São os anos em que deve enfrentar calúnias difamantes, dificuldades nas relações com o Bispo de Soissons, a renúncia ao Colégio São João e as oposições internas de alguns membros do Instituto que visavam a uma cisão (cf. Positio, vol. I, pag. 168-247; G. Manzoni, Leone Dehon e il suo messaggio, pag. 301-327).
São provas que P. Dehon enfrenta com firmeza mas menciona com discrição. Ele as toma como um chamado à conversão pessoal e da obra que tanto ama. Refugia-se no Coração de Jesus, confiando em sua bondade e misericórdia. Medita nas relações da Sagrada Família em Nazaré. Busca a intimidade, a amizade e a contemplação do Senhor (cf. NQT IV/1889, 86-87). P. Dehon evoca o Espírito, a devoção e o entusiasmo do início da Congregação; um clima de entrega, de identificação carismática e de fraternidade que nós podemos entrever nas relações de P. Dehon com seus primeiros religiosos e com os alunos do S. João (cf. A. D. cartas do P. Grison ao P. Dehon, B 21/3).
Certamente a situação atual da Congregação é mais serena que a daqueles turbulentos anos de prova. A palavra “re-encontrar” pode ter hoje para nós uma força especial. Estamos nas vésperas dos Capítulos Provinciais e do Capítulo General. Se quisermos realmente voltar às raízes, temos também que fazer uma sincera e profunda revisão de vida pessoal e institucional.
Costumamos fazer em cada Capítulo uma relação do Status Provinciae / Regionis / Congregationis. Neste ano jubilar temos de cumprir esta tarefa com particular esmero, como uma avaliação de nossa fidelidade criativa ao dom carismático que nos foi dado e tendo em vista o futuro. O Santo Padre, por ocasião do Grande Jubileu, nos ensinou com seu exemplo a “purificar a memória” para lançar-nos, livres de amarras, ao alto mar: “Duc in altum” (Lc 5,4). Nós não podemos não pensar no futuro da Congregação, sendo ela uma “obra de Deus”. Para isto, devemos voltar às suas origens e descer aos seus fundamentos, sonhando a Congregação como a sonhou P. Dehon.
É importante, em primeiro lugar, encarar a verdade da Congregação em suas origens; em seus sucessos e fracassos; em seus valores e pecados; em sua conformidade com o Evangelho e com o que não é evangélico; em suas possibilidades reais e em seus limites. Cada Província, Região e Distrito tem coisas para rever e confrontar. O mesmo há de fazer o Governo geral. Na realidade total da Congregação e em suas distintas partes há belos sinais do Reino que devemos descobrir, saborear e valorizar. Existem também aspectos que precisam ser melhorados, tentações a superar, feridas a sanar, caminhos e experiências a corrigir. “A verdade que nos faz livres”(cf. Jo 8,32) e a configuração com o Senhor são a garantia de toda renovação que pretende ser fiel à inspiração inicial (cf. VC 37).
Devemos fazer tudo isto sem ansiedades, nostalgias ou complexos. Nos há de estimular o olhar voltado à vida, à certeza do Reino, à importância de um bom testemunho e serviço do Evangelho, à esperança que não engana, à confiança no Coração de Jesus . É o convite de Jesus e da Igreja de “navegar mar adentro” e lançar as redes (cf. NMI), o que nos deve mover em direção do re-encontro com a graça dos origens.
2. “Aqui”
No altar da Santa Casa está escrito: “Aqui o Verbo se fez carne”. P. Dehon nos diz: “Aqui nasceu a Congregação, em 1877. Possa ela re-encontrar aqui, hoje, vida nova”.
Pelo que podemos concluir, o “aqui” usado pelo P. Dehon não é uma simples referência a um lugar. Vai mais além da Santa Casa de Loreto. Refere-se ao próprio mistério da Anunciação e da Encarnação do Senhor, que o Santuário celebra e proclama para todas as gerações. Mistério traduzido nas atitudes do Ecce Venio, do Ecce Ancilla e de tudo o que contém a vida da Sagrada Família em Nazaré. Este conjunto de atitudes, situado no início de nossa Congregação, constitui parte de seu patrimônio específico. É a parte inspirante e essencial de nosso carisma desde suas origens. É a fonte de nossa espiritualidade.
O P. Fundador nos convida, portanto, a beber deste poço para encontrar nova vida e para sermos significativos na Igreja e no mundo. Todas as espiritualidades devem referir-se essencialmente ao mistério de Cristo e devem concretizar-se num caminho segundo o Evangelho, sob a ação do Espírito. P. Dehon e nossos antepassados, que viveram com intensidade e exemplaridade nosso carisma, nos ensinam a buscar a inesgotável riqueza de Cristo no mistério de seu Coração divino e humano (cf. Const. 16). O Filho de Deus feito homem nos ama com coração humano (cf. GS 22) e nos revela o amor trinitário de Deus, sua solidariedade com a humanidade toda e sua obediência filial, como expressão de entrega ao Pai e como caminho de re-encontro da humanidade com Deus.
O Coração de Jesus é o Verbo encarnado, rosto visível da própria interioridade de Deus e de seus sentimentos de amor gratuito pela humanidade. Em sua oblação suprema, ferido e aberto na cruz, gera o homem de coração novo e uma nova comunidade de irmãos.
P. Dehon leu o Evangelho na chave do amor de Deus manifestado nas palavras, gestos, opções, prática, vida, morte e ressurreição de Jesus. Cativado por este amor não correspondido, intuiu que sua resposta deveria passar pela união íntima ao Coração de Cristo, associando-se à sua oblação reparadora ao Pai pelos homens, através de sua vida religioso-apostólica, ideal que transmitiu à toda sua família espiritual.
Disto emana sua insistência sobre o oferecimento da vida cotidiana, sobre a Adoração Eucarística e sobre um intenso empenho apostólico (espiritual, social, missionário, cultural, etc.) sustentados pela união a Cristo. Estava convencido que “uma vocação tão bonita (como a nossa) requer um grande fervor e uma grande generosidade” ... “exige (por sua vez) uma habitual vida interior e a união com Jesus ” (Testamento Espiritual). De fato, como Congregação, nos definimos, em primeiro lugar, por um enfoque espiritual e não por uma atividade (cf. Const. 26.30).
Nosso patrimônio é nossa espiritualidade e esta a maneira comum de aproximar-nos do mistério de Cristo associando-nos à sua oblação reparadora. Isto é nosso “AQUI”, constituído por aquela “experiência do Espírito” transmitida pelo P. Fundador para ser vivida, custodiada, aprofundada e constantemente desenvolvida em sintonia com o corpo de Cristo em perene crescimento” (cf. MR 11). É a índole própria de nosso Instituto que traz consigo um estilo particular de santificação e de apostolado, e se expressa com sinais e tradições características (cf. CIC 578).
Valem para nós as palavras de Paulo a seu discípulo Timóteo: “Te recomendo que reavives o dom que tens recebido ... Conserva o que te foi confiado, com a ajuda do Espírito Santo que habita em nós” (2 Tim 1,6.14).
3. “Hoje”
A ação do Espírito, na custódia do depósito recebido, não nos transporta simplesmente ao passado. O Espírito Santo é “memória e profecia de Jesus ”. Como “memória” nos leva a compreender a Palavra do Senhor. Ele ensina e explicita o que Jesus disse e fez. Como “profecia” indica a presença viva e transformadora do Senhor Ressuscitado na história; dá luz e força para que sejamos testemunhas atuais do Evangelho; nos envia e ampara na missão, até tomar a palavra por nós.
O “Hoje” do que falamos não é portanto, somente um tempo cronológico, é um “kairós”, um tempo de graça sob a ação do Espírito. Supõe consciência do Reino que fermenta a história; crê num mundo pleno de germes do Evangelho e rico de possibilidades futuras; enfrenta com esperança teologal os desafios do tempo presente.
O “Hoje” é também uma realidade humana frágil, condicionada por nossos pecados, fraquezas, tradições, resistências a possíveis mudanças. Está sujeito a todas as tentações da época pós-moderna, tais como: a comodidade engendrada pelo materialismo e consumismo, a superficialidade, o egoísmo e o individualismo, a privatização do religioso, a perda do sentido da transcendência e da memória cristã, o relativismo nivelador de todos os valores e expressões da liberdade ...
O “Hoje” é um chamado à conversão de nossas vidas; à atualização de nossos conteúdos teológicos, de nossa linguagem, de nossos sinais e gestos, de nossa forma de enfrentar os problemas e dar respostas. É um chamado à capacidade de abandonar obras mortas ou estéreis, e à criatividade de um novo estilo e de novos espaços em nossa oração, em nossas expressões pessoais e comunitárias de vida religiosa, em nossas relações e diálogo com os demais, em nossa forma de testemunhar o Evangelho e de trabalhar apostolicamente. É também um chamado a integrar harmoniosamente as diferentes dimensões de nosso carisma e de nossa espiritualidade.
O “Hoje” supõe nosso empenho diante dos grandes desafios do tempo presente através da solidariedade com o mundo ferido e prostrado pela dor. Supõe a defesa e a promoção da dignidade humana, especialmente dos pobres, dos oprimidos, das vítimas das injustiças sociais, da globlalização e dos mecanismos que excluem do sistema neoliberal hoje imperante. Supõe uma atitude definida pela paz, pela reconciliação, pelo perdão, pela defesa da criação. Supõe paixão pela verdade e pela justiça.
Este é o “Hoje de Deus” que devemos acolher com disponibilidade de coração, amparados na indefectível fidelidade de Deus Pai, enraizados no amor de Cristo. Assim nos falam nossas Constituições (cf. nn. 34.144) motivando-nos a repensar e a reformular nossa missão em novas formas de testemunho, de presença e de serviços. Com efeito, interpelados pela realidade dinâmica e pelos desafios de nossa época, devemos constantemente “procurar as modalidades de nossa inserção na missão eclesial que nos permitam desenvolver as riquezas de nossa vocação ” (Const. 34).
Reapropriar-se do “Hoje” significa, para nós, sonhar como o P. Fundador e ter, como ele, um olhar crítico e positivo da realidade atual. Ele amou seu tempo e não menosprezou o passado. Até o fim de sua vida, P. Dehon esteve sonhando novos horizontes para a Congregação. Basta lembrar, entre outras coisas, que morreu planejando o envio de missionários clandestinos para o Afeganistão (cf. A. D. carta ao P. Josephus Schulte, sup. prov. NE, 26.03.1923, B 76/6; cartas do P. Octavio Gasparri a P. Dehon, B 98/2, março e abril de 1923).
P. Dehon foi um homem que amou a vida. Foi irredutivelmente otimista sem deixar de ser realista e de ter uma forte consciência crítica da situação social e política de sua época. Comprometeu-se a fundo, seja com os grandes problemas de seu tempo, seja com as coisas cotidianas da Congregação e com as necessidades individuais de muitas pessoas. Não se omitiu em suas responsabilidades e sempre teve tempo para estudar, para cultivar seu Espírito com as belezas da arte, da natureza e da história, e para viajar, observar, conhecer sempre mais. P. Dehon era também um místico, um contemplativo, um homem de oração. Soube cultivar uma autêntica espiritualidade e intimidade com o Senhor. Disto provinha sua força, sua serenidade e sua capacidade de perseverar no caminho empreendido, sem desanimar. O P. Dehon nos estimula a uma atualização constante, que não é somente individual mas que nos afeta como instituição.
Do ponto de vista dos conteúdos próprios de nossa espiritualidade e de nossa história SCJ, devemos agradecer e valorizar muito o trabalho do Centro de Estudos, seja por interpretar e publicar nossas fontes, seja por fazer uma leitura atual de nosso patrimônio espiritual. É muito aquilo que o Centro de Estudos colocou à disposição de toda a Congregação desde que foi fundado e bastante estimulado pelo P. Bourgeois e pelo P. Panteghini.
É também um grande e motivo de alegria o surgimento de Comissões de Espiritualidade de Apostolado e de Justiça e Paz nas distintas áreas geo-culturais SCJ e de pessoas ocupadas em aprofundar temas dehonianos específicos. É particularmente grato quando são os jovens a fazê-lo, com seus estudos e teses acadêmicas.
Estão também a fazer um grande trabalho de renovação e atualização as pessoas e Províncias / Regiões / Distritos que, com ousadia, põem-se a enfrentar os novos desafios da evangelização, da cultura e da pobreza. De fato, o compromisso de muitos confrades no âmbito missionário e social mobiliza as forças da Congregação e concretiza o Ecce Venio e o Ecce Ancilla em nossos tempos. Algumas partes da Congregação estão a renovar-se precisamente por saber redefinir suas opções apostólicas, e saber voltar à espiritualidade e à estratégia do P. Fundador de “ir ao povo”, de “sair das sacristias”, de preferir os lugares áridos, onde não há muita gratificação, onde outros não querem ir e onde se arrisca a própria vida.
O “Hoje” de Deus nos permite abrir-nos com solidez espiritual e criatividade às aventuras e surpresas do Espírito.
4. “Vida Nova”
O Santo Padre lança a toda a Igreja um enorme desafio: que todos os crentes de hoje não somente “falem” de Cristo mas que o façam “ver” às gerações de nosso tempo (cf. NMI, 16). Isto vale para todos, especialmente para os consagrados, chamados a contemplar e a testemunhar o rosto transfigurado de Cristo através de uma existência transfigurada (cf. VC, 35).
Nesta perspectiva, junto com P. Dehon, buscamos hoje em Loreto uma renovação vital de nossa Congregação. Para isto é indispensável voltar à fonte inspiradora, aproximar-se sempre mais da intenção fundante de P. Dehon, apropriar-se de seus conteúdos e de seu Espírito, atualizar suas expressões. Deste núcleo, sob o impulso do Espírito, brotará a novidade, a criatividade e a fecundidade de nossa vida religiosa dehoniana.
Trata-se de revitalizar todos os aspectos constitutivos de nossa vida religiosa SCJ, a saber a experiência de fé, a fraternidade, a prática dos conselhos evangélicos, a missão apostólica, o estilo SCJ específico. São pontos característicos de nossa forma de ser e de proceder, que fazem de nossa vida religiosa uma resposta pessoal ao chamado gratuito de Deus, uma entrega radical a Ele e um serviço generoso aos demais pelo Reino.
a. Revitalizar nossa vida de fé
É a primeira coisa a levar em conta. A vida religiosa, com efeito, é um itinerário de fé marcado por uma profunda experiência de Deus. A maneira de perceber a proximidade de Deus e o lugar que lhe damos em nossa existência - como Absoluto, Amigo e Senhor -, são o eixo constitutivo da vida religiosa. São sua razão de ser e sua fonte primeira de renovação.
Viver como religiosos é radicalizar o caminho da fé, o qual abraça o totalidade da vida pessoal e social. Traduz-se no modo de ser, de pensar, de sentir, de atuar, de relacionar-se com os outros, de querer e de projetar nosso futuro, de comprometermos com a história, com o mundo e com as coisas. No centro da própria existência está o Senhor a quem se ordena, subordina e relativiza todo o resto.
Na raiz e no coração de toda vida consagrada existe uma forte experiência mística de relação com Cristo, com seu mistério e com sua causa. Tal experiência é fruto do dinamismo da fé. Implica a percepção da presença íntima do Senhor que penetra o alma e ocupa o centro vital de nossa existência; provoca a transformação e a unificação de nossa pessoa; suscita uma entrega incondicional ao Senhor; compromete com a causa do Evangelho e a causa dos mais pobres e necessitados; infunde paixão pela verdade, pela justiça, pela solidariedade humana; traz gozo, luz e sentido de vida em meio de provas, lutas e grandes desafios. É uma experiência semelhante à de Jeremias, de todos os profetas e dos apóstolos: “Me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir. Me forçaste e prevaleceste... Havia em meu coração um fogo abrasador queimando em meus ossos” (Jer 20,7-9).
É uma experiência que se vive com uma profunda consciência da própria indigência e vulnerabilidade; e também com confiança, disponibilidade e abandono, sob a sedução e o atrativo de Cristo e da missão que nos confia (cf. Lc 5,8-11). É uma experiência da gratuidade do amor de Deus que requer por sua vez nossa gratuidade na fé. É a experiência de Paulo e de P. Dehon, da qual teve origem nosso Instituto (cf. Gal 2,19-20; Const. 2).
Mesmo no caso das vocações mais empenhadas na história, nunca existe o chamado somente para fazer algo. Em toda vocação se reflete a experiência primordial dos Apóstolos de ter sido chamados para estar com Jesus a fim de ser enviados a pregar, a libertar de toda opressão e a sanar (cf. Mc 3,13-15). Acentuar o que deve ser feito pelo Reino, sem um estreito vínculo com a pessoa de Cristo, que ao serviço pastoral antepõe a confissão da fé e do amor (“Quem sou eu para vocês?” - Mt 16,15; “Simão, filho de João, tu me amas?” - Jn 21,15) e o “segue-me”, corre o risco de esvaziar o conteúdo da própria missão.
A experiência de Deus e a vida de fé marcaram a existência de P. Dehon, que quis infundi-las também na Congregação. Nós, participando de seu carisma e de seu projeto de vida evangélica, devemos modelar-nos segundo o modelo ideal e absoluto que é o Coração de Jesus e segundo o próprio P. Dehon, que é nosso modelo histórico. No centro está o mistério do Coração de Jesus, sinal do amor trinitário e encarnado de Deus, que nos abre os horizontes da disponibilidade filial para com o Pai e da solidariedade humana, configurando-nos com Cristo e associando-nos à sua obra de redenção na dupla dimensão, a mística e a apostólica.
Por dimensão mística entendemos todo o espaço que P. Dehon quis que seus filhos dessem à contemplação, à oração, à meditação e leitura espiritual da Palavra, à adoração eucarística, assegurando o clima, os meios necessários e a disciplina pessoal para viver pelo Senhor, com Ele e nele. A dimensão apostólica abarca todas as formas de trabalhar no âmbito pastoral - missionário - social - cultural, que tradicionalmente caracteriza a Congregação na construção do Reino.
Ambas as dimensões devem ser visíveis e estimulantes. Nem sempre o são. Por vezes não conseguimos e não manifestamos uma integração real entre a dimensão mística e a apostólica. Deste modo nosso testemunho é menos convincente, nosso serviço do Reino, menos eficaz, e nossa vida pessoal e comunitária, menos significativa. Às vezes, estamos por demais absorvidos pela atividade e nos faltam espaços de intimidade com o Senhor. Outras vezes, existem expressões de espiritualidade desencarnadas, rotineiras e profissionais; falta a clareza da profissão da fé.
É preciso que a contemplação chegue a ser atitude de vida, de modo que oração e compromisso apostólico (pastoral, missionário, social, cultural) se enriqueçam mutuamente, como percebemos positivamente nas experiências sociais apresentadas durante a Conferência Geral de Recife. Há, na Congregação, quem faça distinção entre os que são mais espirituais e os que são mais sociais. É uma distinção inadequada. Deveríamos mais almejar a conseguir todos aquela unidade interior que teve P. Dehon, cuja profundidade na fé levou-o a ser místico e, às vezes, homem plenamente comprometido com o social.
b. Revitalizar nossa vida fraterna
O Ressuscitado volta a reunir aqueles que a paixão havia dispersado (cf. Mc 14,27-28.50; Mc 16,7; Lc 24,33-35; At 2,42; 4,32).
A vida comunitária é o primeiro valor que ressuscita com o Senhor no mesmo dia da Páscoa. É um dos grandes sinais da vida religiosa. É uma prova de que “a fraternidade que os homens anseiam é possível em Jesus Cristo” (cf. Const. 65).
A unidade e o “bom Espírito” no interior do Instituto foram preocupação e metas constantes de P. Dehon, que quis que estivéssemos sob o signo do “SintUnum”. Ao expressar, em Loreto, em 1894, seu desejo de que aqui a Congregação re-encontrará nova vida, certamente tinha presente as dissidências internas que afetavam sua unidade e seu bom espírito.
Hoje a unidade do Instituto, vista globalmente, é mais forte. A partir da renovação conciliar cresceu a comunicação de notícias, a comunhão de pessoas, a colaboração em projetos e a partilha de bens. As relações são mais simples e fraternas. Há maior aceitação das diferenças pessoais e culturais. Assume-se positivamente o pluralismo e se valoriza mais o próprio e o original de cada parte da Congregação .
A unidade do Instituto, em sua globalidade e em termos de vida comunitária, encontra sua base na fé: é o Senhor quem nos chamou a segui-lo comunitariamente, e é Ele quem nos faz descobrir a vida fraterna em comunidade como um dom. Tal unidade se fundamenta no patrimônio comum, formado pela vocação, missão e uma série de tradições que temos em comum.
Nossas comunidades religiosas inspiram-se no modelo da comunidade pós-pascal dos discípulos do Senhor (cf. At 2,42-45; Const. 59), que nos estimula a constituir comunidades fraternas, eucarísticas, missionárias e servidoras do mundo. A revitalização das mesmas encontrará base na fidelidade a estes termos.
Estes anos de serviço de governo permitiram-nos perceber que na Congregação há distintos níveis de vivência fraterna. A qualidade de vida fraterna não é uniforme. Os aspectos que mais precisam ser revitalizados são os seguintes: o sentido de fraternidade em algumas províncias; a colaboração dos confrades de uma mesma comunidade na missão comum; a integração dos talentos pessoais dentro do projeto comunitário; a profundidade de comunicação e a partilha da fé no interior da comunidade; o serviço de animação do superior local; o sentido de pertença à Congregação e à própria Província, Região ou Distrito.
Preocupa-nos seriamente a crítica exacerbada, a dureza de juízos e de condutas, e a pouca cordialidade que existe em algumas partes do Instituto. P. Dehon foi muito sensível a isto, a ponto de mencioná-lo com freqüência. Em geral, não se trata de mau espírito, mas talvez de um excessivo perfeccionismo que desanima e anula algumas pessoas, e que esteriliza os projetos comuns. Devemos habituarmos a pensar que muitas coisas podem ser feitas bem de diversos modos, e que a colaboração com o superior e com o que se decidiu na Província é mais frutuosa que a crítica demolidora ou excessiva. O calor humano, a cordialidade, a alegria de estar juntos, a capacidade de transcender os pequenos mal-estares comunitários, deveriam ser uma nota clara de nossa dehonianidade.
O sentido de pertença é outro dos aspectos que precisa ser reforçado. É um problema não somente de formação, mas também cultural. Vivemos num tempo de vínculos curtos e instáveis. Os laços de fidelidade em relação às pessoas, às instituições e a Deus mesmo, são humanamente frágeis. Aceita-se com dificuldade qualquer tipo de ascese, ou uma disciplina, ou uma provação que se prolonga no tempo. A fragilidade no sentido de pertença, dentro de nosso Instituto, é constatada na hora de estudar as motivações de quem decide deixar a Congregação por causa de problemas do quotidiano ou da conjuntura. Surpreende-nos a falta de motivação com que certas decisões deste gênero são tomadas.
Precisamos encontrar a pedagogia adequada e a fé necessária para que a pertença ao Instituto seja vista como uma Aliança divina. Fazemos os votos para seguir a Cristo na comunidade e na Congregação. Nossa Aliança inclui três elementos: a pertença ao Senhor, a pertença recíproca entre os confrades da comunidade e a pertença de todos ao Instituto.
Aqui não se trata simplesmente de uma relação de grupo, baseada na camaradagem. Trata-se de uma opção da vida de fé e duma resposta ao chamado do Senhor. É preciso colocar a pertença no mesmo patamar da própria profissão. É preciso aprofundar a própria identidade que é hoje um conceito em crise e em mudança. A identidade haverá de ser fundamentada no carisma, configurando a própria vida em Cristo.
A identificação do religioso com a Congregação é progressiva. Supõe o conhecimento da obra, o apreço das pessoas, dos pioneiros e do Fundador. Requer a assimilação da intenção e do espírito do Fundador. Deve-se interiorizar os valores da comunidades, atualizando suas normas, suas expressões. A conseqüência será a participação responsável e livre sob os três aspectos mencionados. É uma opção profunda de entrega ao Senhor, de comunhão com os confrades e de disponibilidade ao modo de ser e de proceder da família religiosa.
A questão do fraco sentido de pertença está a exigir uma adequada formação das pessoas e para o governo. Disto depende boa parte de nosso futuro e é um assunto que merece ser estudado nos próximos Capítulos provinciais e geral. Um passo importante foi dado com o projeto “Nós, Congregação”, projeto em crescimento em toda a Congregação. Isto, porém, não basta. Pela profissão religiosa passamos a pertencer a uma família que nos oferece seus bens (materiais, espiritualidade, carismáticos) e à qual nos devemos entregar de coração para que realize sua missão na Igreja. Um forte sentido de pertença acrescenta a responsabilidade, a disponibilidade pessoal e assegura nossa perseverança no Instituto, mesmo que, em meio aprovações, conflitos e incompreensões.
c. Revitalizar a prática dehoniana dos conselhos evangélicos
Muitos dehonianos se espantam quando falamos de um modo dehoniano de entender e viver os conselhos evangélicos. Cada Congregação tem seu modo de expressar a obediência, a castidade e a pobreza. Tal modo deriva de carisma próprio, daquilo que constitui o patrimônio da Congregação. Desta forma podemos dizer que nossa obediência não é jesuíta, nossa pobreza não é franciscana, nossa castidade não é eremítica ou de clausura. Nós, dehonianos, temos um modo original de expressar os valores da consagração religiosa, coisa que deve ser reconhecida e promovida.
Falar do “proprium” na vivência dos votos caracteriza nosso discipulado, colocando em evidência nossa relação pessoal e irrepetível com o Senhor, com os outros e com o mundo. Procuramos nosso estilo dentro do âmbito de nossa missão, nos ensinamentos e na prática de nosso Fundador e de nossos predecessores, em nossas tradições e em nossa Regra de Vida.
O primeiro elemento determinante é nossa associação à oblação reparadora de Cristo em sua dimensão mística e apostólica.
A obediência é o voto tipicamente dehoniano. Leva a marca do Ecce Venio de Jesus e do Ecce Ancilla de Maria (cf. Const. 58.85) que determinam a atitude fundamental de nossa vida religiosa. Nos associa a Cristo, de quem assumimos a causa, o serviço reparador, a disponibilidade filial e absoluta ao Pai, a solidariedade para com os homens e seu destino pascal. Implica uma adesão radical à vontade do Pai, criando espaço para Deus e passando para “as mãos dos homens” (Lc 9.45). Assume a modalidade do Servo de Javé, da Serva do Senhor e do lava-pés dos discípulos. Somos guiados e amparados pelo Espírito que nos envia ao povo e nos coloca diante dos grandes desafios de hoje. Nos faz preferir os lugares onde há maior necessidade e onde os outros não querem ir. Nos infunde a paixão pela verdade e pela justiça e nos liberta para os outros. Nos torna co-responsáveis pelo futuro da Congregação, da Igreja e do mundo. A obediência a partir da fé é, para nós, a forma suprema de amar, nosso modo de “dar a vida” (cf. Jo, 5, 13-14).
A pobreza dehoniana é vivida sob o signo da comunidade, da solidariedade e da justiça. É o sinal do Sint Unum. Mais do que ausência de bens é uma renúncia à administração e uso individual dos bens. Nos convida para a comunhão dos bens e dos projetos, à co-responsabilidade na administração e a cuidar daquilo que está a nosso dispor, a colocar tudo em comum com transparência, a depender do discernimento comunitário ou da autoridade competente para seu uso. Requer que nos libertemos da ânsia de possuir, depositando nossa confiança no Senhor. Nossa segurança não está nos bens que temos ou administramos mas na nossa capacidade de partilhar. A pobreza motiva a partilha internacional entre as várias partes da Congregação. Supõe solidariedade com os pobres. Nossos bens têm um fim eclesial e social que deve ser respeitado. Nosso estilo de vida deve ser sóbrio e de trabalho. Termos de estar abertos ao clamor dos pobres, temos de preferir a presença em meios pobres, evangelizando-os para dar-lhes esperança. Devemos ser justos, formar para a justiça e despertar as consciências a respeito dos valores essenciais do evangelho. Somos chamados a sermos solidários na lutas que promovem e dignificam a condição humana. Temos de estudar e formar-nos na Doutrina Social da Igreja. A pobreza dehoniana nos leva a administrar uma economia sadia, solidária e justa, atenta às normas da Congregação e às leis civis.
A castidade dehoniana se realiza e se expressa através do que P. Dehon chama de “amor puro”, isento de quaisquer outros interesses ou conveniências. Amor que reafirma a gratuidade do dom de Deus e de nossa consagração. Entregamo-nos sem pretender reconhecimento ou algum retorno humano. Exige disponibilidade ao Reino de Deus, anunciado e testemunhado como realidade presente na história e realidade escatológica quanto à sua realização plena. Em nível pessoal, requer maturidade afetiva, cordialidade e capacidade de acolher os outros na pureza da caridade. Exige um empenho sério com os outros, acentuando o primado da caridade. Nos propõe a solidão, o silêncio e a disciplina pessoal. Gera uma consciência crítica a respeito de tudo o que avilta a pessoa humana. Faz da comunidade religiosa uma família fundamentada na força da fé. Impele-nos a nos encarnarmos na realidade e propor os valores alternativos do Evangelho. Nos faz sentir com a Igreja e nos move ao cumprimento da missão, aceitando lugares e serviços às vezes áridos e pouco gratificantes. Nos torna criativos na missão sem diminuir seus conteúdos básicos. É um voto que vivemos à luz do Adveniat Regnum Tuum, reino que está próximo e que é fundamentalmente amor, gratuidade e graça.
d. Revitalizar a missão específica da Congregação na Igreja
Participamos da missão da Igreja, partilhando sua caminhada, suas angústias, êxitos e provações. Somos um Instituto apostólico que se define a partir de sua espiritualidade, herdada do Fundador e reconhecida pela Igreja.
Mesmo que não tenhamos sido fundados para uma determinada tarefa, temos elementos típicos de nosso apostolado que nossas Constituições reconhecem como integrantes desta missão. São eles: a adoração eucarística como um serviço à Igreja, o ministério entre os pequenos, os humildes, os operários e os pobres, a atividade missionária, a formação de sacerdotes e de religiosos (Const 30-31).
Poderíamos dizer que nosso caráter especifico cobre quatro áreas de atuação: espiritual, social, missionária e cultural. Esta consciência foi sendo adquirida a partir da prática da Congregação nestas áreas. São estas as áreas que melhor espelham a Congregação. O Superiores gerais, desde P. Philippe, chamam a atenção para este caráter específico nosso. P. Philippe diz que as missões não são uma atividade acrescentada à Congregação e que nenhum membro pode ignorar a importância deste serviço (cf LCC vol. II, p 132,12).
P. Govaart escreve, em 1952: “Este duplo apostolado, o social e as missões entre pagãos, estava no espírito e no coração de P. Dehon” (Cf LCC vol III, p. 756, 55).
Os grandes momentos históricos de crescimento viram estas quatro áreas serem desenvolvidas em conjunto. Hoje, nossa tarefa de revitalização deve inspirar-se no caráter específico de nosso apostolado, no nosso estilo próprio de marcarmos presença na pastoral. A Congregação serve a muitas paróquias. Trata-se de um trabalho imenso e necessário, sobretudo onde as Igrejas particulares são mais carentes. Por outro lado, isto nos faz bem como Congregação pois nos insere na realidade, junto ao povo. O próprio P. Dehon assumiu paróquias em diversos lugares (na Holanda, no Brasil, etc. ). Devemos cuidar que sejam conduzidas respeitando a vida religiosa. Não existe somente o modelo diocesano de pastoral paroquial. É possível criar um modelo religioso e dehoniano de gerir uma paróquia. È melhor que tenhamos paróquias grandes, nas quais possa viver uma comunidade religiosa; paróquias pobres e de periferia, onde nos defrontamos com os grandes desafios de hoje; paróquias com população jovem, a fim de promover vocações para a Igreja; paróquias nas quais seja transmitida nossa espiritualidade e sejam prestados serviços complementares que os padres diocesanos não tenham condições de prestar; paróquias missionárias que exigem vitalidade, criatividade e formação de muitas comunidades de base.
e. Revitalizar nosso estilo dehoniano
Podemos falar também de um estilo dehoniano de sentir e de proceder que nos caracteriza. Trata-se de um estilo que configura uma verdadeira “cultura dehoniana’, a “cultura do coração”, a “cultura da cordialidade”.
È um modo nosso de educar nossa mente e nossa interioridade, e, sobretudo, de educar as atitudes do coração. É um modo particular de pensar a história, de julgar os acontecimentos, de sentir e enfrentar os desafios emergentes, de situar-se perante o mundo, de tratar as pessoas e de conhecer a Deus. É nosso modo de ver o mundo, os acontecimentos e as pessoas com compaixão e de amar com coração humano.
P. Dehon, com sua personalidade forte, foi o artífice desta cultura. Seu horizonte, sua sensibilidade humana, sua abertura social, seu compromisso diante dos desafios, sua capacidade de diálogo e compreensão dos jovens, sua unidade interior, seu ardor apostólico, sua profunda espiritualidade e intimidade com Deus, contituem um caminho, uma pedagogia e uma forma de ser que a Congregação herdou dele. Quem sabe se o costume de chamá-lo de “très bom Père” não seja o resumo de um estilo dehoniano? Foi o que os alunos do São João perceberam nele e, por isso, o amavam e admiravam. P. Dehon expressa este estilo também nas conferências sociais e nos discursos que fez aos ex-alunos.
Hoje, muitos dos que trabalham conosco percebem esta cultura, embora, em geral, não saibam defini-la. Mencionam nosso modo de acolher, a dedicação ao trabalho, a disponibilidade, o compromisso social. Devemos valorizar esta herança, recuperá-la como forma de ter um coração de carne e não de pedra; um coração de bom pastor, de bom samaritano, de servidor dos irmãos. É uma forma sapiencial de viver e de abordar as coisas, os acontecimentos, o ministério pastoral, o trabalho, o lazer, a vida comum, as relações humanas e o mistério de Deus. Este estilo permite-nos viver encarnados na realidade sem perder a dimensão transcendental. Aproxima-nos do povo ao qual P. Dehon nos envia, encurta as distâncias. Ajuda-nos a conseguir a unidade interior e o otimismo que é esperança teologal.
IV. Proposta do Governo Geral a cada dehoniano
A vida cristã leva em seu coração e tem como princípio e fim a Encarnação do Verbo. Centrada neste mistério, ela é uma contínua atualização do “sim” que atraiu Deus ao mundo. Como Governo geral desejaríamos que este “Ano Dehoniano” fosse ocasião de uma profunda renovação pessoal de casa dehoniano, sob o digno do Ecce Venio e do Ecce Ancilla. Queremos que este ano leve cada um a renovar o “sim” da sua profissão religiosa. O “sim” de Maria permitiu a Encarnação do Verbo; o “sim” de Jesus encaminhou o projeto de amor de Deus e trouxe vida nova ao mundo. Muitas coisas de Deus e muito bem da humanidade dependem de nosso “sim”. Queremos que este ano nos faça revitalizar a criatividade de nosso Fundador (cf. VC 37). Para tanto, é necessário centrar nossa vida no Coração de Cristo. Somente assim, nossa vida pessoal e nosso Instituto ganharão significado, credibilidade e fecundidade.
Não visamos a uma celebração faustosa mas à conversão de cada um a Cristo, segundo o programa evangélico do EcceVenio e do Ecce Ancilla. Com isto, não impedimos que haja alguma celebração comunitária e nem tampouco que atividades pastorais venham a inspirar-se neste evento. Certamente que haveremos de ver os frutos, também pastorais, de uma conversão ao fervor inicial, da revitalização do carisma, iluminados pela sabedoria do Evangelho, guiados pelo Espírito.
Queremos propor um itinerário análogo ao que P. Dehon percorreu entre 14 de fevereiro de 1877 e 28 de junho de 1878. Foi, antes de tudo, um tempo de escuta e de discernimento da vocação. Em seguida, ele fez seu noviciado que começou com um retiro prolongado, de 16 a 31 de julho de 1877.
Retomemos também nós o caminho espiritual de nosso postulantado, noviciado e da primeira profissão! Enriqueçamos esta experiência com aquilo que fomos aprendendo durante este tempo todo em relação ao nosso carisma e à vida religiosa-apostólica.
Nós propomos que cada religioso reflita e aprofunde os conteúdos de nossa herança carismática, à luz do nº 16 de nossas Constituições: “...uma comum abordagem do mistério de Cristo, sob a direção do Espírito, e uma atenção particular àquilo que ...corresponde à experiência de Padre Dehon e dos primeiros membros da Congregação” . Para tanto, faz-se necessário:
Preferimos propor um itinerário individual para não sobrecarregar as comunidades, que já devem ocupar-se na preparação dos Capítulos provincial e geral. Cremos que esta proposta se encaixa dentro dos objetivos do próximo Capítulo geral, de reafirmar o caráter específico de nosso carisma apostólico em face aos desafios do tempo presente e da re-fundação da vida religiosa. Por outro lado, não podemos esquecer que é tarefa de cada Província, Região e Distrito manter viva sua história, preservando a memória dos acontecimentos, datas e pessoas que a construíram.
Algumas perguntas poderão ajudar-nos neste itinerário de renovação:
Até aqui referimo-nos sempre à Congregação por uma questão circunstancial; é ela que celebra 125 anos de fundação e o faz no contexto privilegiado de um Capítulo provincial e geral. Este acontecimento, todavia, não é alheio à Família Dehoniana. De fato, ao fundar os “Oblatos do Sagrado Coração de Jesus”, P. Dehon desejava que seu carisma fosse partilhado também por outros sacerdotes, religiosos e leigos.
Por esta razão convidamos toda a Família Dehoniana, especialmente os leigos dehonianos, a viver este “Ano Dehoniano” encontrando nele um a luz e um estímulo para seu compromisso específico na mensagem de graça que brota da Santa Casa de Loreto.
Para o leigo trata-se de viver o mistério da Encarnação na realidade temporal: na vida em família, no trabalho, no ambiente próprio, no mundo em geral. A atitude do Ecce Venio e do Ecce Ancilla , bem como o modelo da Sagrada Família de Nazaré, proporcionam muita luz à missão dos leigos de construir uma sociedade mais humana conforme o Coração de Deus. Incorporando-se à obra do Verbo Encarnado, o leigo tem diante de si grandes horizontes para traduzir em ação reparadora aquilo que ele sente, vive e faz. A espiritualidade de oblação e reparação dehoniana haverá de ajudá-lo no esforço de assumir os valores evangélicos que fazem dele um missionário em seu próprio ambiente. Seu contexto vital é, ao mesmo tempo, o espaço natural para sua atividade espiritual, social, missionária e cultural, o que favorece sua participação no carisma e na espiritualidade de P. Dehon.
Os outros membros consagrados da Família Dehoniana, fiéis aos valores e características de seus Estatutos e Constituições, podem igualmente viver um tempo especial de graça e de renovação inspirados no mistério da Anunciação e Encarnação do Senhor. As referências comuns ao Coração de Jesus e as atitudes fundamentais do Ecce Venio e do Ecce Ancilla, os faz participantes do projeto dehoniano de vida segundo o Evangelho. Eles contribuem a ressaltar alguns aspectos deste carisma e desta espiritualidade que o Espírito concedeu a toda a Igreja e que não fica limitado aos confins da Congregação.
Todos nós formamos uma família porque temos um pai e guia espiritual comum, P. Dehon. Temos um modo comum de abordar o mistério de Cristo a partir da perspectiva do Coração traspassado e aberto na cruz, disponível e solidário, filial e profundamente humano. Vivemos associados à sua oblação reparadora. Partilhamos a missão de construir o Reino de amor “nas almas e na sociedade”. Sem dúvida, a esfera as modalidades de atuação são diferentes pois devem respeitar a vocação específica de cada instituição e pessoa.
Podemos e devemos encontrar espaços comuns de partilha da oração e de nossa vida de fé; de formação e reflexão em torno do patrimônio comum; de colaboração em alguns serviços eclesiais, sociais e missionários. Isto nos dará oportunidade de valorizar o dom comum, nos fará mais eficazes na evangelização e na construção do mundo conforme a vontade de Deus.
Em dezembro passado foi publicada a “Carta de Comunhão” da Família Dehoniana que descreve o sentido, a identidade e os critérios de afiliação à mesma. Cremos importante que todos os Institutos (religiosos e seculares) e os grupos que sentem-se vinculados ao carisma de P. Dehon consigam discernir e definir explicitamente sua identificação com estas orientações e se querem ou não ser considerados membros desta Família Dehoniana. Todos deveriam comunicar sua decisão antes de 30 de novembro de 2002.
VI. Um convite final
Este ano terá como centro a figura de P. Dehon. À medida em formos conhecendo sua personalidade, sua espiritualidade, seu sonho, sua vida e sua obra vai crescendo nossa estima e admiração por ele. Cresce também a convicção sobre sua santidade, “imitável”, como disse um dos consultores da Santa Sé ao votar em favor do caráter heróico de suas virtudes. (cf. Voto I, p. 28).
Nós nos comprometemos a trilhar esta mesma estrada na convicção de que é uma estrada de santidade autêntica. É o que nos garante a Igreja ao reconhecer o carisma dehoniano como um dom do Espírito, ao aceitar as Constituições da Congregação e dos demais Institutos reconhecidos em nível pontifício e ao decretar a heroicidade do Padre Fundador.
Este ano será um tempo propício para pedir com insistência e confiança a graça da beatificação de P. Dehon, para que todo nós nos sintamos mais profundamente comprometidos neste caminho de santidade. No Capitulo geral de 1991 o Santo Padre insistiu que nós pedíssemos esta graça. A Igreja já expressou, humanamente, sua convicção de que P. Dehon foi um homem que viveu com heroísmo a vida cristã. Para propô-lo como modelo e exemplo oficial á Igreja universal, a Igreja requer sinais do Senhor, que são os milagres. Depende de nós reconhecer nele um intercessor em nossas necessidades e recorrer à sua mediação pedindo os sinais que a Igreja espera. È nossa tarefa fazer com que P. Dehon seja reconhecido pelo povo de Deus e que seja invocado como intercessor. Se Deus o quiser beatificar e canonizar fará os milagres necessários no momento oportuno. Os milagres só se verificarão se nós pedirmos com confiança e insistência, sempre para a maior glória de Deus e para maior santidade da Igreja. Uma Congregação como a nossa, presente em 37 países, com tantas atividades apostólicas, com uma enorme produção de livros, revistas e folhetos, com programas diários em rádios, televisão, sites na Internet... não poderia promover um pouco mais, ao longo deste ano, a figura e a fama de santidade de Padre Dehon?
Conclusão
Esta carta engloba a habitual mensagem vocacional para o dia 14 de março, “Dia da Vocação Dehoniana”. Naquele dia estaremos todos unidos na oração para pedir ao Senhor que continue a suscitar na Igreja homens e mulheres capazes de viver heroicamente o carisma que nos foi dado através de P. Dehon.
Rezemos especialmente pelas vocações da Congregação SCJ e dos demais institutos de vida consagrada que se inspiram no mesmo carisma e espiritualidade de P. Dehon. Voltemos a atenção para La Capelle, lugar onde ele nasceu, e que está a se tornar um centro internacional de espiritualidade, reflexão e serviço dehonianos. Contribuamos economicamente para a manutenção e o cuidado daquela casa.
Que o Espírito Santo guie nosso coração e o mantenha nos caminhos do Evangelho, para que palpite fortemente por Deus na solidariedade com todos os nossos irmãos.
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Siglas utilizadas:
Const. = Constitutions
DSP = Directoire Spirituel
LC = Lettres Circulaires
NQT = Notes Quotidiennes (voll. I-IV)
NHV = Notes sur l’Histoire de ma vie
(voll. I-VIII)
THE = Thesaurus Precum
CIC = Codex Iuris Canonici
GS = Gaudium et Spes
LE = Laborem Exercens
MR = Mutuae Relationes
NMI = Novo Millennio Ineunte
VC = Vita Consecrata