ENTREVISTA COM O PADRE GIUSEPPE PIERANTONI

Sbril 16, 2002

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Beppe, há uma semana foste libertado. Poucos dias, porém preenchidos de movimento e encontros depois de seis meses de solidão.

Parece-me um tempo muito importante, esta semana passada depois da minha libertação. Porque encontrei-me com muita gente. De repente fui tirado da vida dos pobres, isolados como se estivessem fora da história dos povos, à margem da história da humanidade, e lançado no coração latejante da história. Encontrei os grandes do país, a presidente das Filipinas, os políticos mais importantes, os chefes do exército e da polícia, e depois os chefes da igreja: o arcebispo de Davao, o bispo de Pagadian, o núncio apostólico, todos os meus confrades, irmãs, sacerdotes etc. Agora em Roma de novo farei esta experiência. políticos, homens da Igreja... É um tempo forte, diferente do precedente.

Também este faz parte da experiência vivida, devo aceitá-lo, como me abandonei inicialmente à experiência do rapto. Devo aceitar também esta experiência esperando que não dure muito. É preciso encontrar o equilíbrio...

Nestes primeiros dias como vês o tempo do sequestro, de que modo se faz presente?

Neste momento estou na fase de reacção àquilo que vivi. Não penso muito. Porém, volta sempre à minha mente; volta como uma experiência muito positiva e cada vez mais serena. A dimensão dramática ficou para trás; para sempre esquecida. Ficaram os vultos daquelas pessoas, a sua abertura, a sua simpatia no relacionamento. E quando os recordo, rezo por eles, rezo com sentido de gratidão pelo que sucedeu.

Gratidão de quê?

Gratidão por esta experiência que me foi concedida. Não a procurei, nunca teria tido a coragem de procurar algo do género. Foi-me oferecida, foi-me imposta. Agora compreendo que vem de uma sabedoria superior que é acima de tudo a de Deus que guiou toda esta experiência, mesmo se através dos homens. Fez-me fazer a experiência da precariedade, da pobreza que é aquela em que vive a maior parte da gente desta região. E não só: a maior parte da população nas Filipinas, no mundo, vive assim. Sem saber o que acontecerá amanhã, sem saber se haverá um pôr-do-sol para eles.

Esta experiência de precariedade e pobreza, de forma tão radical, já não a tinhas feito antes, durante a tua estadia nas Filipinas?

Não. Devo dizer que uma coisa é vê-la nos outros, outra é vivê-la em pessoa. Vê-la nos outros faz-te sofrer porque te sentes impotente, mas tens ainda a tua vida, a tua própria vida nas tuas mãos. Ao contrário, nestes seis meses fiz a experiência de não poder gerir a minha própria vida, de não poder gerir o meu futuro, nem mesmo o meu amanhã. Esta é a maior experiência espiritual que fiz. Compreendi o que significa abandono que è a palavra e o valor chave da nossa espiritualidade dehoniana. Percebi o que significa pobreza, que Deus disse ser uma bem-aventurança. Portanto entrei numa nova dimensão, a morte do homem velho e o nascimento (esperemos!) do homem espiritual. É aquela que sentia há anos, a de "morrer fora dos muros de Jerusalém", por que, ficando no interior duma experiência protegida, nunca teria sido possível para mim compreender isto que agora compreendo.

Vi-te em Roma há já alguns anos, depois na Albânia. Vi-te duvidar, interrogar a tua própria missão pessoal, que é a da Igreja, a tua presença nas Filipinas. Depois de um processo de discernimento regressaste. A seguir veio o sequestro. A certo momento tive este pensamento, seguramente ocasional, melhor dizendo, um engano total, e pensei: se tudo correr bem, Beppe dirá que queria qualquer coisa do género, nesta fase da sua vida religiosa.

É verdade. Devo dizer que no início do sequestro senti que não se tratava somente de uma experiência humana ou política, muito menos religiosa, mas de uma experiência espiritual querida e guiada por Deus. Não sei se devo dizê-lo, mas tinha pedido a Deus um sinal, desaconselhado pelo confessor com quem partilhei este meu desejo de um sinal, por que tinha chegado a um momento de grande descontentamento interior por aquilo que estava a fazer e a viver. Por conseguinte disse a Deus: Por favor, dá-me um sinal da tua vontade antes de terminar os dez anos de permanência nas Filipinas. O 11 de Dezembro de 2001 será o dia do décimo aniversário, concede-me um sinal, se não mo concedes, no final dos meus três anos de permanência aqui, voltarei a Itália".

O Senhor concedeu-me um sinal, um sinal muito, muito forte. Pois este esclareceu-me muita coisa. Durante o meu sequestro, só para dizer o que se passou dentro de mim, senti no meu interior uma grande calma. Quis reagir instintivamente no momento, depois, tive a coragem do abandono.

Em que momento? Logo no início?

Portanto, quando entraram em casa aqueles cinco raptores para imobilizar-me, naquele momento senti raiva, só raiva. Quis reagir, mas lembrei-me do que sucedeu a um padre irlandês dois meses antes. Foi morto na tentativa de rapto. Por que reagiu. Quando me veio à ideia este acontecimento, pensei: "Deixemos esta gente agir."

Saídos do convento, corremos no escuro, perdi as sandálias e levado por aquela gente, senti um desejo de rezar para que ninguém morresse, que não houvesse derramamento de sangue.

Finalmente chegámos a uma barca, distanciámo-nos e aí tive uma grande calma, pude falar com um dos raptores que me respondeu muito delicadamente. Então, neste momento, senti dentro de mim esta voz que me dizia: " Envio-vos como ovelhas para o meio de lobos". Tratava-se de descobrir o sentido de uma missão: não era tanto uma experiência que deveria fazer mas uma missão que me era confiada. Senti também uma voz que dizia a frase de Jesus: "se alguém te pedir para o acompanhar durante uma milha, fá-lo durante duas." Logo, disponibilidade e gratuidade, vão sempre mais longe do que o previsto.

A terceira coisa que senti durante este pequeno período de dez horas de rapto e de viagem na barca, foi esta frase, a mais importante, a frase que Jesus disse a Marta antes de abrir o sepulcro de Lázaro e de fazê-lo sair: " Não te disse que se acreditasses verias a glória de Deus?" Esta frase inspirou-me que o projecto de Deus nesta situação era de manifestar a sua glória. E tudo o que devia fazer era abandonar-me à fé, de aceitar a minha impotência, sabendo que Ele manifestou a Sua potência. Isto guiou-me em toda esta experiência e ajudou-me a superar também os meus sentimentos de raiva, de dor, de preocupação pela minha família. Na fé conduziu todos os outros que estavam longe, sobretudo a minha família.

Ouvindo as tuas primeiras impressões depois da libertação, seguramente que havia pessoas que ficavam comovidas, e, também, alguém incomodado, confuso diante da exaltação do sequestro como tempo de graça. Esclarece: como distinguir alguém que não teme pela sua vida, por que não a aprecia e não a estima, e um outro que não receia pela sua vida, por que cheio de amor pelo dom da vida recebida, a coloca nas mãos de Deus?

Esta pergunta pode ajudar a esclarecer o conflito que tive dentro de mim durante a primeira hora. Sentia dentro de mim a voz que dizia: "Tens a obrigação de defender a tua vida, tens o dever de tentar criar problemas aos teus raptores, um dever de combater contra o mal." Como superei isto que senti como se fosse uma tentação? Não era a voz do Espírito, era a voz do meu egoísmo. Antes de mais, pela minha experiência de objector de consciência, estava habituado a pensar na teoria da legítima defesa como uma forma de traição ao espírito evangélico. Com o discurso da legítima defesa, foram esquecidas as instâncias mais profundas do espírito de Deus na história da Igreja. Tens o direito de defender-te, mas defendes-te também da experiência que Deus gostaria que tu fizesses. Não és mais um cordeiro enviado para o meio de lobos, mas és um outro lobo que luta pela sua sobrevivência. Por conseguinte pensei que devo renunciar ao direito de uma legítima defesa: estou sofrendo um abuso, devo defender-me, porém aceito - de modo mais ou menos livre - abandonar-me e não defender-me. E esta foi, na minha opinião, a chave para uma profunda experiência. Creio que foi isto que me garantiu a serenidade e a minha saúde psíquica.

Talvez agora estivesse zangado, mau e cheio de amargura depois destes seis meses de abuso. Ao contrário estou sereno, contente por ter sobrevivido, com uma boa recordação de tudo o que suportei. Deixei para trás este direito da legítima defesa. Parece-me que esta seja a missão da Igreja que é aquela de renovar o sacrifício do cordeiro, Cristo, que é inocente e disposto a morrer. Este salva a todos, salva-nos a nós mesmos, salva a história do homem da lógica do direito. Que é, todavia, a lógica destes raptores. E talvez a lógica do islamismo fundamentalista - a mentalidade da lei. Se alguém consegue vencer isto, emerge graça e gratuidade no confronto com o seu opressor. Veio-me à mente uma outra frase de Jesus que diz: " Se rezais pelos que vos fazem bem, que fazeis de especial? Orai pelos vossos perseguidores e então sereis como o vosso Pai que está nos Céus." Esta é a missão da Igreja, a de ser como o Pai, de ser livre, grata, de pensar só no bem, no bem do outro. Todo o resto vos é dado por acréscimo. Esta era a minha lógica.

Depois interroguei-me: Não será que estão agindo em mim certos mecanismos psicológicos (síndroma de Estocolmo), pelos quais a vítima se identifica com o pensamento do seu opressor, como no livro de Bettelheim sobre os sobreviventes do campo de concentração, que fala desta atitude das vítimas que legitimam a lógica do opressor. Todavia, concluí que não. Não acredito que fosse assim no meu caso. Até porque tive, ao menos uma vez, um sentimento oposto. Em algumas ocasiões deste exílio manifestei atitudes contrárias a este meu abandono, quando, por cansaço ou ira, me recusei a obedecer e deixei-me guiar pelos instintos. Compreendi que não estava a fazer bem, nem a mim, nem aquela gente. Discuti muito porque tinha fome, estava cansado. Tinham prometido que me traziam alguma coisa de comer e, depois, de uma semana traziam-me três latas de sardinhas que deviam dar para não sei quantas semanas. Disse-lhes: "Acabai com isto, sois vós que quereis matar-me". Isto criou um mal estar entre eles. Havia um que se sentiu ofendido, e queria bater-me, mas os outros defenderam-me. Contudo, também eles ficaram ofendidos. Então compreendi que não havia necessidade de atraiçoar o bem que existe no outro, mesmo que limitado.

Se o outro faz qualquer coisa de bem, é preciso que sejamos fiéis àquele bem - mesmo que não seja suficiente para legitimar o seu comportamento. É importante para ele que se acredite no bem que nele existe. Então compreendi que não era uma atitude que vinha do Espírito, e o meu discernimento orientou-me de novo para a fé.

Em situações semelhantes, as vítimas correm o risco de viverem o seu drama de forma passiva, não com actores activos. Já os teus pais numa carta diziam convencidos que "este longo tempo de prisão sirva para que o Pe. Beppe possa fazer o bem, mesmo aos seus raptores." Conseguiste? Viveste o abandono de modo activo, em vez de passivo?

Perfeitamente. No meu interior superei a lógica do direito para conseguir tornar-me útil na relação com os meus raptores. Vi que lentamente se ía criando um clima de confiança. Daí que tenham compartilhado comigo os seus problemas pessoais, ao ponto de me tornar capelão deles e de ser ainda padre nesta forma esquisita, não para os cristãos, mas para eles. Contavam-me os seus problemas familiares. São quase todos casados ou em vias de se casarem; têm filhos. Mas devido à situação deles, é difícil voltar à família ou visitá-la. Como alguns tinham namorada e não sabiam escrever, pediram-me para lhes escrever cartas de amor. Foram seis que escrevi. Falaram-me da sua religião com muito entusiasmo. Apercebi-me que tínhamos pontos em comum, sobretudo a nível da fé, a fé abraãmica, fé em qualquer coisa que não se pode conhecer porque pertence ao amanhã, garantida só das promessas de Deus, podendo-se acreditar e sacrificar todo o presente com generosidade. E isto é verdade por que esta gente espera um amanhã melhor, crê e aceita grandes sacrifícios para atingir qualquer coisa que tenha a garantia de Deus. Este amanhã melhor nós o chamamos de "Reino de Deus", não?! É o manifestar-se da justiça divina, é a paz e unidade, é vida eterna no seio de Alá.
 
 

Ter-te-íam morto por qualquer motivo?

Não. Creio que não.

De facto, entre nós, mais de que o medo que te assassinassem, era a preocupação da contínua pressão exercida pelos militares, dos vários grupos policiais e a dificuldade nas negociações que pudessem levar à tua morte, ou de alguém.

Este foi o verdadeiro perigo. Mas não veio a acontecer, direi quase por milagre. A pressão militar era evidente, sobretudo na segunda fase da prisão. Os militares por três vezes chegaram muito próximo do lugar onde nos encontrávamos. De modo particular no 29 de Janeiro, dia do aniversário da minha mãe. Estiveram mais ou menos a uns trinta metros de nós. Não se ouvia nada. Mas sabia-se do dia em que deviam chegar ao local. Estávamos prontos a partir, de madrugada tudo estava em ordem para começar a marcha, com os sacos às costas, as armas, tudo recolhido no centro desta planície onde estávamos escondidos. Havia o perigo de os militares passarem no alto, sobre o pico da montanha e nos verem. Na verdade passaram na parte mais baixa. E assim não puderam ver-nos. Todavia, passaram muito próximos. Do lado oposto havia um outro campo de rebeldes que nos protegiam. Os militares passaram entre os dois grupos e não viram nada, ou não quiseram ver. Não houve, por isso, nenhum confronto.

Tu falas de rebeldes, os jornais de guerrilheiros, o bispo de Pagadian no princípio, identificava-os de ordinários criminosos. Na tua opinião qual era o seu verdadeiro objectivo?

O objectivo deles era o dinheiro, o dinheiro do resgate. Para comprarem armas para a sua defesa pessoal, e, também, com uma finalidade política: a independência de Mindanao do governo de Manila.

Ficaste sempre com o mesmo grupo?

Sempre com o mesmo.

Deste grupo e segundo os teus conhecimentos, alguém ficou ferido ou morto nos numerosos confrontos com os militares? Porque os media quase todos os dias noticiavam que membros do denominado Pentagon eram presos, feridos e mortos pelos militares.

Nunca me apercebi que alguém fosse morto. Porém, é preciso dizer que muitos deste grupo se distanciaram no decorrer do tempo. De facto, somente seis do grupo chegaram até ao fim destes seis meses de cativeiro. Alguns foram embora e depois regressaram, outros nunca mais regressaram. Somente seis destes estiveram presentes durante todo este tempo. Por isso, não sei onde permaneceram os restantes. Alguns afirmavam-me que andavam a combater, mas devia ser uma espécie de comédia como aquela de me fazer acreditar de estar em Basilan e de serem de Abu Sayaff que combatia contra o exército e contra os americanos presentes na área. Também me disseram: " vamos combater contra eles". Posso afirmar que nunca ouvi com os meus ouvidos explosões nem disparos. Um ou outro tiro sim, mas nada de combates.
 
 

Tanto aqui em Roma como em tantos outros lugares, vivemos este acontecimento à nossa maneira, de modo muito diferente do teu. Numa primeira fase, até fins de Dezembro, foi um período muito intenso, no sentido que a esperança e a desilusão eram fortíssimas. Depois começou uma outra fase, muito mais tranquila, mas ainda muito incerta. E tu? Por exemplo, nos começos de Dezembro, quando se pensava que tudo estivesse pronto para a tua libertação. E, depois, nada... E isto repetiu-se muitas vezes. Nada se soube durante muito tempo. Os primeiros dias de Dezembro, também para ti, eram dias, não direi cruciais, mas onde se tornava claro que, depois da profunda desilusão, era necessário fazer as contas para um longo cativeiro?

Senti exactamente a mesma coisa. Inicialmente uma esperança unida a uma desilusão muito forte. Depois a meados de Dezembro uma grande esperança quando me fizeram gravar uma cassette prometendo-me: "mais algumas semanas e partirá". Alguns dias depois ouvi a voz da minha irmã na radio. Mensagem na qual pedia aos raptores um acto de clemência no fim do Ramadão e de libertar-me para poder celebrar o Natal junto da minha família. Ouvi-a por acaso e deu-me uma alegria enorme escutá-la. Julguei que verdadeiramente fosse possível sair antes do Natal para o celebrar juntamente com os meus confrades e toda a minha família. Depois da desilusão, mesmo que forte, um pouco de tristeza... Também porque naquele momento não me encontrava bem de saúde. Pouco e pouco tudo se foi normalizando. Compreendi que deveria ainda esperar muito tempo... E assim, me fotografaram em Janeiro. Não dei grande crédito ao assunto. Digamos que o período seguinte foi mais sereno. Não me deixei iludir muito.

O Natal - como o viveste?

O Natal foi um dia, direi, não muito simpático. A noite foi uma das mais frias de toda a experiência. Dormíamos sobre uma rede, tinha como roupa só a que levei aquando do rapto, uma t-shirt. Nesta t-shirt estavam escritas duas palavras: DEHONIANOS e FILIPINAS. Parecia-me providencial que no momento do rapto, entre tanta roupa possível, vestisse precisamente esta. Depois, deram-me uma farda militar, calças e um pullover.

Naquela noite fazia um frio terrível. Às sete da manhã, duas horas depois do nascer do sol ainda tremia de frio. Naquela noite ninguém dormiu bem. Todos dormimos pouco. Depois, nada para comer. Ao almoço, deram-me um prato de arroz, o condimento era o sal. A ceia foi igual: arroz sem nada. No início esforcei-me por dar importância à celebração do Natal: nasceu Jesus para todos. Queria estar feliz e procurei dentro de mim: "Devo estar feliz, devo ser feliz". E consegui por algumas horas... depois senti o peso de estar só. Veio um pouco de tristeza.

Como era o teu dia a dia?

A vida de cada dia era feita de nada. De manhã eles levantavam-se muito cedo para a oração, e eu levantava-me também para rezar. Normalmente, de noite, não conseguia dormir muito. Acordava por volta da uma ou das duas da manhã. Era demasiado tempo, tudo somado, o tempo de repouso e o de nada fazer. Daí que rezasse. Rezava de noite e ao nascer do sol conseguia ainda dormir um pouco. As primeiras horas da manhã passava-as sem fazer nada. Segundo eles eram as piores horas. Os militares começavam a deslocar-se por volta das três ou quatro da madrugada. Por isso, durante aquele período era preciso fazer silêncio, prontos, esperávamos em silêncio, falando pouco e em surdina. A meio da manhã davam-me a possibilidade de tomar banho. Este era um momento muito bom para mim, porque lavando-me relaxava-me, sentindo-me limpo. Todavia, nem sempre. Era dia-sim, dia-não. Depois faziam alguma coisa, comia-se um pouco. As refeições eram um momento muito interessante, mesmo se se comia pouco. Comia-se juntos e todos a mesma coisa. Normalmente se havia algo a mais era-me oferecido. A parte da tarde era mais livre. Havia mais diálogo, mais serenidade. Uma outra coisa interessante era quando, por volta das cinco ,começava a arrefecer e também quando alguém de fora vinha trazer alimentos e dar notícias, etc.

Seis meses sempre com as mesmas pessoas, mantendo neste grupo restrito, sempre as mesmas relações. Tiveste algum contacto com outro grupo, ouviste rádio, recebeste jornais?

Não. Jornais nunca. Somente o jornal que trazia as minhas fotografias tiradas em Janeiro. E aquele jornal li-o todo, mesma a publicidade. Não compravam o jornal porque não sabiam ler inglês, eram pessoas muito simples, analfabetas ou semi-analfabetas. Não estavam interessadas em jornais. Tiveram durante algum tempo a rádio, mas captava somente duas estações locais, não sendo muito interessantes. E, também estes canais transmitiam em línguas que eu não compreendia: Tagaloe, que é a língua nacional que eu não conheço, depois o cebacano, uma língua local. Havia algum soap-oper em sebuano, língua que eu conheço. Tentei de ouvir, mas cansei-me depressa.

A comunicação entre eles era feita na língua que falavam? Como para esconder aquilo que diziam?

Sim, fizeram-no frequentemente. Não consegui compreender qual fosse a língua deles. Porque fizeram-me acreditar que a língua deles era o Yakan. Contudo, disseram-me que também usavam outras línguas.

Provavelmente foi melhor, também para ti, não saber quem foram os raptores, de onde vieram nem conhecer os detalhes da operação. Disseste que rezavas de noite, quando não conseguias dormir. Como se faz oração nestas circunstâncias?

Sempre utilizei o terço. Rezei sempre os mistérios, meditando, por momentos, naquilo que o mistério me sugeria e colocando uma intenção particular para cada mistério. Posso dizer que repeti algumas intenções regularmente, em cada dia. Rezei sempre do primeiro ao último dia pela minha família, pelas pessoas mais chegadas que sabia estarem a sofrer muito por causa de mim, para que o Senhor as protegesse e fizesse sentir a esperança. Rezei também pela minha missão dehoniana nas Filipinas, por toda a Congregação, e de modo particular pelas vocações, pela Igreja de Pagadian e especialmente pelo Bispo D. Jimenes, que como agora vim a saber, se revelou o verdadeiro protagonista, a pessoa mais equilibrada que interveio nesta situação.

Também rezei sempre pelos meus raptores, para que não sucedesse nada nem a eles, nem a mim e para que pudessem amadurecer uma forma diferente de encarar a vida. Os seus sentimentos eram absolutamente negativos em relação à realidade política e social das Filipinas. Em parte eu partilho dessa visão, mas não completamente. Certamente que com aquele seu comportamento não contribuem para melhorar a situação. Pedi ao Senhor que eles pudessem ser iluminados, pudessem perceber que só os caminhos da paz são úteis. E rezei as palavras de Jesus no Getsémani: "Pai, se é possível afasta de mim este cálice. Contudo, não se faça a minha, mas a tua vontade". Tinha a certeza que este tempo de espera era tempo de esperar a realização do plano de Deus. Tinha de ter fé, tinha de ter esperança e abandono porque Deus estava a cumprir a sua obra.

E a missa?

Durante seis meses não celebrei missa. Durante seis meses não tive uma Bíblia à disposição. Não tive o breviário. Devo dizer, devo confessar que disse a Deus nos anos precedentes que estava cansado de missas, de sacramentos, e, portanto, Deus tomou as minhas palavras muito a sério. Percebeu o grito que vinha de dentro e deu-me seis meses de liberdade, seis meses de repouso sacramental, um Sábado Santo, sem liturgia. Foi uma experiência interessante, porque, como disse, neste silêncio litúrgico surgiram as palavras de Jesus, que verdadeiramente me foram sugeridas pelo Espírito Santo. Portanto não era a Bíblia ou a liturgia que inspirava a minha espiritualidade, mas o próprio Espírito de Deus. Estava sem liturgia, mas não sem Deus, não sem a presença de Deus.

Tu sobreviveste. Para ti esta experiência correu bem, mas para ti correria igualmente bem se morresses. E que pensar de Deus perante pessoas que noutras situações terminam mal? Tu agora podes agradecer a tua libertação, mas existem tantos outros...

Talvez o que vou dizer agora não responde à tua pergunta, no entanto... Discuti muitas vezes com esta gente sobre a liberdade humana. Os meus raptores diziam-me: "Não há nada que aconteça que não tenha sido querido por Deus". Mas ao mesmo tempo diziam: "Não se deve proceder contra a lei de Deus". Portanto eu não conseguia perceber como é que, segundo a mentalidade deles, tudo acontece por vontade de Deus e ao mesmo tempo se age contra a lei de Deus. Onde está a liberdade humana? Antes via as coisas de um modo diverso. Agora percebo que o homem pode entregar a sua liberdade; o homem é de tal modo livre, ao ponto de proceder totalmente contra a vontade e expectativas de Deus. Mas o homem também pode entregar-se sempre mais a Deus. Que eu hoje viva ou que eu hoje esteja morto não é assim tão importante. Tenho a certeza que em tudo aquilo que me acontece devo procurar viver em comunhão com o Senhor. Talvez vivesse em comunhão com o Senhor também na minha morte. No entanto, sei que hoje não estou morto, mas um dia morrerei. Portanto, devo procurar viver o tempo que me falta continuando nesta profunda comunhão com Deus. Sinto-me um pouco como uma pessoa a quem foi dada uma segunda possibilidade. E repito que a maior expressão da liberdade humana é entregar-se, entregar a própria vida a Deus.

Parece-me óbvio que uma tal experiência só seja realizada em todas as suas dimensões com o decorrer do tempo. Só assim, um dia depois de outro, conhecerás o outro lado da medalha. Tantos esforços para te fazer sair desta situação, tantas pessoas desconhecidas que passaram minutos e horas de oração por ti, e também tantas pessoas que choraram por ti; de esperança desiludida, de desespero, e de alegria, finalmente. Como pensas integrar tudo isto, todo este grande rio de amor na tua experiência?

De facto já pensei muitas vezes nisso. Parece-me que faça parte desta experiência de Deus, de Deus que nos ama infinitamente e que se dá gratuitamente, na medida em que nós próprios não merecemos nada. A este Deus uniram-se tantas pessoas que, de modo gratuito, unicamente por amor, rezaram por mim, sofreram por mim, fizeram sacrifícios por mim. Sinto-me numa condição que é no fundo a condição de todos os seres humanos: dependemos uns dos outros, do amor dos outros e do amor de Deus. Estou na condição de não ter nenhuma dúvida de que a minha vida depende de Deus que me ama e dos outros. Portanto, tenho o privilégio, talvez também a missão, de fazer compreender que somos interdependentes, unidos uns aos outros e a Deus. A nossa vida é um dom que se renova em cada dia no amor de uns para com os outros. Sou um devedor, um devedor da minha vida a todos.

Não ecoa em todas estas numerosos e diversas iniciativas dos outros para contigo a verdade evangélica que não há maior prova de amor do que dar a sua vida pelos seus irmãos e irmãs?

Talvez era este um dos aspectos no plano de Deus nesta experiência que muitos fizeram: experiência de oração, de sacrifício por um irmão que estava sofrendo. Salvaram-me, posso dizê-lo, mas também salvaram-se a si mesmos. Fizeram a experiência de como se pode esquecer de si próprios para recordar-se dos outros.

Disseste que gostarias de voltar às Filipinas. São poucos os religiosos e padres que depois de uma tal experiência puderam regressar onde estavam. Viram muito, conhecem muito gente envolvida nas negociações, conhecem muitos lugares que deveriam permanecer escondidos, etc... Já estás a pensar no teu futuro?

Neste momento estou com muito entusiasmo. Quero regressar, gostaria de regressar a Dimataling, a Mindanao. Provavelmente è melhor ficar por cá durante um certo tempo. Veremos. No entanto regressarei. Depende também do nosso grupo, dos superiores. Talvez regressarei, mas para outros lugares, numa zona mais distante.

Ofereci a Deus a minha disponibilidade para ajudar, no futuro, se Ele quiser, algumas destas pessoas a normalizar as suas vidas. Sobretudo alguns jovens de 17, 18 anos. Disseram-me: "Padre, esta vida assim não está bem, queremos estudar". Quiçá se um dia não serei útil aos meus raptores, agradando a Deus, também desse modo,… Teria muito gosto em rever aquele a que chamo "Comoander Ustaf" (leigo empenhado na religião), ou seja, um dos comandantes do grupo que me prendeu. Um homem que conhecia muito bem a sua religião e que me demonstrou sentimentos muito belos em relação à religião e também em relação aos meus pontos de vista. Agradou-me dialogar com ele sobre a sua religião. Se os fundamentalistas islâmicos fossem todos como ele, penso que não haveria motivo para termos medo do Islão. Naturalmente que ele também seguiu a estratégia do grupo, mas foi honesto, dizendo: "Deste e daquele não posso falar." Agiu correctamente comigo, protegeu sempre a minha vida com esperança e confirmou-me que a fé islâmica é fé em Abraão, e portanto, uma fé profundamente semelhante à fé cristã. Notei isto nesse homem. Nele reconheci esta mesma experiência de fé.

Se tu falas de fé em Abraão, que seria um ponto de encontro entre a fé cristã e a muçulmana, como a descreverias?

Esta gente aceita todo o peso dos mandamentos da sua religião, que são muito exigentes, apenas porque crêem e obedecem a Deus com fé simples. Na perspectiva cristã seria como S. Francisco que dizia: acolher o evangelho "sine glossa", sem racionalismos. Uma fé que faz dizer: sim, eu não compreendo, mas Deus sabe, Deus sabe o que è bom e o que é mau para mim. E se faço um sacrifício, Deus me garante a fecundidade deste sacrifício. É esta a estrutura da fé deles. Para mim é também válida esta experiência e atitude de fé. Por exemplo, em todos aqueles seis meses, soube que Deus estava a preparar algo de novo. Agora, depois da libertação, compreendo que teve sentido esperar seis meses para que tudo pudesse ser levado por Deus ao seu cumprimento.

Li nas tuas primeiras entevistas que o contacto com a natureza te agradou imenso. E até parece que fisicamente, graças a esta experiência de natureza pura, te sentes melhor que antes.

A minha primeira consolação foi Deus e a oração. A segunda consolação foi a beleza da natureza. Uma coisa estupenda. Nos dois primeiros meses estivemos junto à costa, numa floresta de mangróvias, que são umas árvores que crescem na água do mar. Portanto um ambiente marinho com tantos peixes que passavam debaixo dos nossos pés, e tantos pássaros belíssimos. Vivemos como os macacos, nas árvores, por dois meses. Depois dirigimo-nos para o interior, na floresta fluvial, com grandiosas árvores e outro tipo de animais. E entrámos dentro desta floresta. E tudo me parecia tão belo que não conseguia ter medo, mesmo quando esta gente caminhava em situação de guerra. Tudo ao nosso redor falava de paz, de amor, da abundância dos dons de Deus para nós. Aconteceu-me muitas vezes partilhar estes sentimentos com os raptores. Recordo, por exemplo, um homem, único velho do todo o grupo, com mais ou menos sessenta anos. À tarde tínhamos um pouco de tempo para conversar, sentávamo-nos e contemplávamos a noite que chegava, as cores do pôr-do-sol, as estrelas que surgiam, o ar fresco, os cantos dos pássaros. Há um pássaro que canta sempre. Logo de manhã parece que grita: "Toca a levantar-se!", e depois ao entardecer volta a cantar com o mesmo tipo de canto, querendo dizer: "Preparai-vos, que a noite está a chegar!". O velho dizia-me: "Padre, quem é que comanda o sol, a lua, quem fez todas estas coisa lindas, não foi Alá?. E eu respondia: "Certamente!" Mas, ele não perguntava com a atitude de quem quer indagar os meus sentimentos. Dizia-o de espírito contemplativo. Belíssimo. Comoveu-me. Também porque estes sentimentos eram perfeitamente comuns a ele e a mim.

E se ele dizia Alá, não queria porventura dizer: "é Alá e não o teu Deus?"

Não, creio que não. Creio que também eles tinham a clara percepção que o nosso Deus é o mesmo. Naturalmente que algumas vezes fomos tentados a discutir teologia. Aconteceu, sobretudo com uma pessoa que veio de fora. Provavelmente tinha estudado qualquer coisa de teologia católica e propôs-me a discussão como um desafio. Eu, por um instante, aceitei o desafio, para quebrar a rotina, por divertimento. Depois pretendeu levar-me a uma discussão sobre a Trindade. Mas eu não quis entrar na questão. Cada discurso sobre Deus parte de uma opção de fé, e se não partilhamos este ponto de partida, isto é, ou a fé islâmica, ou a fé cristã, corremos o risco de discutir sem chegar a compreender sempre mais o outro na sua experiência de Deus.

Portanto, segundo a tua opinião, não foste só tu a descobrir algo da fé deles, mas também eles puderam, talvez de um modo não muito elaborado, descobrir algo de comum entre a fé deles e a tua.

Exactamente! Ao menos é o que eu espero, mas não tenho a certeza. Espero que eles, por fim, tenham experimentado, comigo, uma certa força de fraternidade, de comunhão, garantida por Deus. Para eles os cristãos são os irmãos maiores, como o são para nós os hebreus. Nós os precedemos e, portanto, não temos a plenitude da revelação que atinge o seu total cumprimento no Corão, segundo eles.

As circunstâncias da tua libertação permaneceram um pouco obscuras. Para nós aconteceu num momento de certo modo inesperado. Como aconteceu?

Posso dizer-te que mais ou menos duas semanas antes da libertação aquele "Comander Ustad" regressou de improviso, depois de dois meses de ausência, dizendo: "Padre, eu não pensava regressar mais a este grupo. Mas de repente fui de novo envolvido nas negociações. Parece que finalmente o governo também está presente nas negociações e que esta seja uma ocasião decisiva. Trata-se agora de escrever esta carta e de gravar uma cassette com as condições que nós impomos" (a carta de 16 de Março). Portanto na quarta-feira da Semana Santa, inesperadamente, logo de manhã, fui informado que seria libertado. Finalmente libertado! Estavam à espera que alguém viesse de fora para pegar em mim e levar-me. Esperámos muito. À tarde, pelas quatro horas, deixaram-me partir. Não consegui despedir-me de todos. Naquele momento pensava que fosse a partida para a liberdade. Parti com um pequeno grupo de pessoas, talvez uma dezena. Caminhámos a toda a pressa durante três horas. Tiraram-me tudo, deixaram-me de mãos livres para facilitar a caminhada. Eles, por seu lado, transportavam os sacos e as armas. Um caminho muito fatigante. Chegámos a um lugar onde não havia possibilidade de passar. Disseram-me: "Existem soldados, não podemos avançar". Voltámos para trás e caminhámos durante uma hora até encontrar um sítio para passar a noite. Dormimos ali e, de manhã cedo, voltámos ao lugar onde tínhamos vivido ultimamente. Eram Quinta-feira Santa. E eis que os planos tinham falhado, novamente.

Depois, de novo improvisamente, no Domingo, 7 de Abril, Domingo "in albis", fui informado que depois do almoço partiríamos. Há uma hora todo o grupo se reuniu àqueles do outro grupo. Ao todo éramos umas 35 pessoas. Caminhámos desde a uma hora até às seis horas, mas não fizemos o mesmo percurso de Quarta-feira Santa. Parámos num certo lugar e comi aquilo que estava preparado para o almoço. Aliviaram-me das coisas que eu transportava comigo. Às 6.45 da tarde parti com um grupo mais pequeno e com outros dois guias que vieram de fora ao nosso encontro. Éramos cerca de uma dezena de pessoas. Caminhei das sete até há uma da noite. Uma caminhada muito difícil, fatigante, ao ponto que quase me aborrecia pensando que talvez fosse melhor não fazê-la. Depois sucedeu que uma parte do grupo perdeu-se do caminho. Tivemos que parar e esperar por essa gente. Pensava que teria o encontro às onze, mas a esta hora estávamos muito longe do objectivo. Mais tarde percebi que o local marcado para o encontro era ainda muito mais longe do que aquilo que eles pensavam. Caminhámos, caminhámos, caminhámos,... Depois pude falar com aquele que comandava o grupo. Alguns, entretanto, desistiram da caminhada porque também eles estavam extenuados. Deviam ainda fazer a viagem de regresso ao local de partida para não serem capturados pela polícia. E eu disse ao comandante: "Olha, não penses que eu tenha forças para voltar para trás. Estou extenuado. Só posso andar para a frente, não tenho nem força psicológica, nem força física para voltar para trás. Tenho só força psicológica para avançar. Ou libertam-me esta noite, ou nunca mais me libertam. Portanto, eu quero avançar. De outro modo não colaborarei mais convosco, e, portanto procurem chegar ao objectivo. Nenhum regressa!" Talvez, por fim, também esta minha atitude tenha tido o seu peso.

Eles mantinham-se em contacto com alguém no exterior através de telefone-satélite. Talvez estivessem em contacto com aquela ambulância que depois seria a que me veio buscar. Finalmente, por volta da 1.30 ou 1.45 da noite chegámos próximo da estrada. Chamaram a ambulância. Fizeram-me mudar. Deram-me outra roupa, controlaram-me, tiraram-me tudo o que tinha. Tinha por exemplo algumas balas que me haviam oferecido e que eu queria levar como recordação. Tiraram tudo. Deixaram-me apenas com a chave do convento. A única coisa que tive comigo do início ao fim: um porta-chaves com uma imagem de S. José e de Jesus a trabalhar na carpintaria. Por volta das duas horas chegou a ambulância. O comandante tomou-me pela mão. Na ambulância estavam cinco homens que se identificaram como polícias. Dois ou três vinham de Manila. Os outros dois ou três eram da polícia daquela região. O comandante fez-me correr pela estrada juntamente com ele. A uma certa distância a ambulância parou. Saíram três pessoas. Encontrámo-nos. Um dos polícias pegou-me imediatamente e acompanhou-me rapidamente até à ambulância. Um outro colocou-se atrás de nós e escoltou-nos. Um minuto depois partimos na ambulância.

Fizemos uma viagem de quatro horas. Chegámos a Dipolog City por volta das seis horas da manhã. Promoveram um encontro com várias personalidades da polícia. Depois fizeram um pequeno controlo médico e, passados, mais ou menos, quarenta e cinco minutos, entrei num pequeno avião da polícia e partimos para Manila. Em Manila aterrámos no aeroporto, encontrámos políticos. Disseram-me: "Padre, agora vamos encontrar-nos com a Presidente. Com ela estarão também os jornalistas. Por favor, não faça grandes discursos, faça apenas um agradecimento para não se deixar instrumentalizar."

De facto as notícias sobre a tua libertação eram muito dramáticas: falava-se de combates, de pressões dos militares sobre o grupo e que os raptores te tinham deixado livre para poderem escapar.

Na verdade foi muito calmo. Pode acontecer que os militares tenham feito pressão porque efectivamente havia um certo medo que os militares chegassem. Durante a última semana recuámos várias vezes, mudámos frequentemente de lugar nessa última semana. E depois, confirmaram-me, através dos membros do grupo, que quatro deles tinham sido presos. E havia o receio que estes falassem. Portanto, pode ter acontecido que tenha sido uma pressão militar a facilitar a libertação.

Superado um momento difícil na vida há que conseguir descobrir a mensagem, o chamamento que Deus te oferece - no viver o sofrimento, a angústia, a insegurança - numa só frase. Podes e queres dizer qual é a mensagem que Deus te revelou através destes acontecimentos?

Para isto retomarei as frases, os slogans da nossa espiritualidade. Para mim a frase decisiva é: "abandono". Abandono que é o modo mais genuíno, mais profundo, mais eficaz para que se realize outra expectativa da nossa espiritualidade "Adveniat Regnum Tuum" ("venha o teu Reino"), para que se realize o Reino de Deus. Nós não nos devemos converter só dos nossos defeitos, dos nossos egoísmos, devemos converter-nos também das nossas virtudes. Acontece, numa espiritualidade plenamente madura e adulta, abandonar-nos totalmente nas mãos de Deus, no grande mistério da pobreza, da insuficiência, da própria e reconhecida incapacidade de governar-se a si próprio. Tudo coisas que eu experimentei em plenitude nestes seis meses. Eu fui sempre uma pessoa activa na minha vida, fui protagonista da minha vida. Neste momento, em que experimentei uma completa impotência em tudo, e cheguei ao ponto de garantir o meu futuro, o meu amanhã, tornei-me finalmente um instrumento. "Quando me sinto fraco, então é que sou forte". Esta frase de S. Paulo resume a experiência cristã adulta.

Não receias que, depois deste tempo forte, será muito mais difícil viver as tuas descobertas na vida quotidiana, religiosa, fraterna?

É correctíssimo. Será a prova, o teste que a humildade atingida nestes meses se venha a tornar uma condição estável em mim. Veremos. No entanto acredito nesta possibilidade.

Acredito que fui feliz por ter sido raptado por um grupo de fundamentalistas. Não falo de todos os fundamentalistas. Se eu caísse nas mãos de um simples kidnapping-gang, provavelmente neste momento estaria morto. Em vez caí nas mãos de pessoas que diziam: "Nós sabemos que existe Um sobre nós. Sabemos que fizemos um pecado contra a lei e os mandamentos." Para explicá-lo diziam-me: "Para nós também é pecado comer carne de porco, mas no dia em que estivermos para morrer de fome comeremos. Porque o primeiro mandamento é sobreviver. O segundo é obedecer aos mandamentos. Portanto nós raptámos-te porque precisamos de sobreviver, de comprar armas para a nossa defesa e para a realização dos nossos objectivos, isto é, a libertação de Mindanao do governo de Manila. Sabemos que é um abuso, mas procuramos de não juntar a estes outros abusos." Por isto estou convicto que, se caísse nas mãos de gente para a qual Deus não é uma realidade da sua vida quotidiana, teria sido muito pior para mim.

Na sua carta à Família Dehoniana, depois da tua libertação, o Pe. Geral identificou já alguns pontos que revelam a fecundidade da experiência do teu sequestro para toda a Família Dehoniana. Que pensas, quais poderiam ser os frutos desta experiência que ultrapassam a tua própria pessoa?

De facto, já falei bastante deste tempo como tempo de graça. Penso que este sequestro, que não era só uma experiência minha, mas de todos os outros, poderá ter talvez um significado para a nossa missão nas Filipinas. Percorremos, nos últimos anos, momentos difíceis no nosso grupo. Talvez esta experiência comum poderá ajudar a purificar e reconciliar. Para além da alegria da libertação deveremos, como grupo, continuar a interrogar-nos sobre a mensagem de Deus para o nosso grupo. Depois creio que, também ao nível da Igreja local, nos venha alguma fecundidade deste sequestro. Homens e mulheres de diversas confissões cristãs reuniram-se para rezar pela minha libertação. Fizeram-no pela primeira vez na sua história. E agora continuam a reunir-se rezando por tantos outros em semelhantes situações difíceis.

Além disso, aquilo que aconteceu ajudou talvez a esclarecer os nossos jovens candidatos à vida religiosa que esta vocação não é simples procura de bem-estar, de tranquilidade, de segurança, antes, comporta um risco: seguir o destino do Mestre pobre e crucificado.

É importante, para mim e para todos, ver estes acontecimentos com os olhos da fé, ou seja, não só como um drama já superado, mas como um tempo de graça cujo sentido cada pessoa e cada grupo é chamado a descobrir.

Entrevista conduzida pelo Pe Stefan Tertünte, scj